Debatedores dão contribuições para efetivação das cotas raciais na Justiça

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Foto: Banco de Imagens/CNJ
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Os esforços para a promoção da igualdade racial na magistratura foram debatidos em reunião pública aberta pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na quarta-feira (12/8) para discutir o tema. Os participantes indicaram o impacto da baixa representatividade negra entre juízes e juízas e propuseram ações práticas para concretizar políticas já aprovadas, como a que estabeleceu as cotas raciais no Judiciário, e construir mecanismos que garantam o acesso de negros aos quadros funcionais da Justiça.

A bacharel em Direito e Iyaloríxa do Ile Aiye Orisha Yemanja Winnie Bueno observou que é recente e tardio o reconhecimento do Poder Judiciário a respeito das lutas contra a desigualdade social e racial e sobre as mobilizações realizadas pelos movimentos antirracistas e pela intelectualidade negra. E, para ela, isto gerou consequências graves à Justiça brasileira. “A exclusão de pessoas negras das carreiras do Poder Judiciário, bem como a recusa de tratamento equitativo para essas pessoas nas esferas desse mesmo Poder são exemplos contundentes da dimensão política do racismo”, afirmou. Segundo ela, essa dimensão se manifesta na negativa de direitos para a população negra, “direitos rotineiramente estendidos para as elites econômicas e para aqueles que são historicamente lidos como sujeitos de direito”.

Para o mestrando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e militante do Movimento Negro Vitor Luis Marques dos Santos, não há como garantir a igualdade racial na Justiça brasileira enquanto o poder está concentrado numa estrutura desigual, na qual a maioria dos magistrados é branca. “É preciso trabalhar a paridade racial nos tribunais. Sem voz e sem poder de decisão, não há igualdade de justiça”, enfatizou.

O professor e conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) Otávio Luiz Rodrigues Jr. afirmou que, efetivamente, o Brasil vive uma letargia normativa em termos de medidas em direção à igualdade racial. Para ele, as posturas avançadas adotadas por órgãos de cúpula do sistema de Justiça, como o CNJ e o CNMP, são exceções, como as também adotadas pelos tribunais superiores, como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Ele frisou que é essencial que esses espaços abertos pelo Judiciário sejam compartilhados por outras esferas da República e que haja uma mudança na sociedade. “Talvez esse seja o ponto mais dramático: que haja uma profunda e revolucionária mudança na mentalidade da população brasileira, que infelizmente permanece vinculada a práticas, concepções, preconceitos e hábitos que revelam um passado marcado pela segregação e desigualdade de povos”, disse.

No sentido de uma transformação, ainda que lenta e demorada, Rodrigues Jr. citou o Estatuto da Igualdade Racial, que completa 15 anos. “Precisamos que também os representantes eleitos entendam que esta não é uma luta segmentada, mas integra toda a população brasileira e tem potencial libertador. Evidentemente que, de par com essa situação de cunho racial, há outros elementos ligados à violência, à desigualdade social e econômica, mas nenhum desses elementos per si é tão grave, marcante, indelével quanto o elemento da desigualdade racial”, afirmou.

Propostas para efetivação das cotas

Para além da definição de cotas raciais para ingresso na magistratura, instituídas pela Resolução CNJ 203/2015, os participantes da reunião pública reforçaram a necessidade de adoção de um programa de ação afirmativa consistente para ingresso da pessoa negra na magistratura e a importância de fiscalizar essas ações para que sejam concretizadas.

Segundo o diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Júlio Cesar de Sá da Rocha, o Poder Judiciário deve sim fomentar em seus quadros a diversidade étnica, racial e de gênero. “Deveria haver uma ampliação de ingresso na magistratura de negros e negras em todo o Brasil para 30%, com um programa de acesso ao Judiciário com bolsas anuais e programa de formação continuada em igualdade racial”, afirmou em sua fala.

Neste mesmo sentido, o advogado e professor da Fundação Getúlio Vargas Thiago Amparo defendeu a proposta de criação de um programa de ação afirmativa para ingresso de negros na carreira da magistratura, seguindo o modelo implementado pelo Instituto Rio Branco para ingresso na carreira diplomática. “É preciso que se adote políticas efetivas para que pessoas que queiram entrar na magistratura possam ter as condições materiais para isso, como ocorre na diplomacia, onde a bolsa de estudo pode ser uma inspiração para essa proposta”, explicou.

Ele ressaltou, porém, que, apesar de importante, a diversidade e equidade na composição da magistratura são insuficientes para a transformação necessária. “É preciso que exista, de fato, uma Justiça Social. Ou seja, que se desenvolva, efetivamente, um olhar do Judiciário e do CNJ com relação às principais áreas do Direito que impactam especialmente os negros e negras no Brasil”, declarou.

Também defensora do modelo utilizado para ingresso na diplomacia, a doutora em Ciências Sociais e professora universitária Zélia Amador de Deus apontou a necessidade de o Poder Judiciário adotar, com urgência, um programa de ação afirmativa sério, com metas estabelecidas. “O Brasil é um país fundado sob a égide do racismo e a grande característica desse racismo, que o manteve por séculos, foi o silêncio”, declarou. A professora criticou o ensino no país e ressaltou que, no Brasil, é possível a pessoa entrar em um curso de Direito, fazer mestrado e doutorado e nunca tratar de racismo durante as aulas.

O advogado e professor de Direito na Fundação Getúlio Vargas Wallace Corbo também reforçou que, para fazer parte do Judiciário, os candidatos negros precisam de condições financeiras para estudar e se inscreverem nos concursos disponíveis. Ele elencou medidas que, se implementadas, podem ajudar no aumento da representação da população negra no Poder Judiciário. “Seria necessário haver isenção de taxa em concursos para juízes e a possibilidade de entrega de documentos no Judiciário local. Nem todos possuem condições de viajar para entregar os documentos pessoalmente”, disse. Outra sugestão diz respeito às provas dos concursos, que, para ele, poderiam ser realizadas de maneira remota.

Ampliação das cotas

A retomada da análise pelo CNJ sobre a definição de cotas para concurso de tabelião de cartório foi reforçada pelo presidente da ONG Educafro (Educação e Cidadania de Afro-descendentes e Carentes), Frei Davi. Em junho de 2019, o Plenário Virtual do Conselho decidiu que os tribunais têm total autonomia quanto à previsão de vagas para cotas raciais nos concursos para outorga de delegação de serviços notariais e registrais. Ele também fez proposições sobre a aplicação de recursos federais advindos de verbas de multas de processos de corrupção em ações e políticas públicas raciais, a extensão de decisões de desencarceramento para a população negra presa e a suspensão de operações policiais em favelas do Rio de Janeiro. “Só assim para reduzir em 70% a morte de jovens negros no Rio”, disse.

Também debatedora na reunião pública, a doutora em Direito Constitucional e Teoria do Estado Thula Pires apontou a necessidade de adoção de ações efetivas que possibilitem a mudança no cenário atual, como iniciativas relacionadas ao modo de ingresso e progressão na carreira da magistratura. Ela citou ainda a importância de iniciativas para a produção de dados sobre o tema e questões vinculadas a aplicação da Constituição e do Código de Ética da Magistratura.

Thula Pires alertou ainda que o combate ao racismo institucional no Poder Judiciário precisa ser um eixo central de cada um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável que compõem a Agenda 2030, sob pena de não se atingir os objetivos que o Estado brasileiro assumiu perante a comunidade internacional e aos quais o CNJ se vinculou. “A criação do GT [sobre igualdade racial], bem como a implementação de suas recomendações, será acompanhada de perto por todos os movimentos negros em atuação e caberá ao CNJ decidir se pretende continuar a ser uma engrenagem do colonialismo jurídico ou se passará a exercer a única função compatível com respeito à vida, à liberdade e à realização da justiça”, afirmou.

Reunião pública

Ao todo, vinte e oito pessoas, entre especialistas e representantes de comunidades e ONGs que lidam com o combate ao racismo ou temáticas relacionadas à população negra, foram habilitadas para apresentar sugestões ao grupo de trabalho instituído pela Portaria nº 108/2020. O colegiado do CNJ é destinado à elaboração de estudos e indicação de soluções para a formulação de políticas judiciárias sobre a igualdade racial no âmbito do Poder Judiciário.

Além das questões referentes às cotas raciais no Judiciário, a reunião também recebeu contribuições sobre a formação continuada de operadores de direito na temática racial e sobre aspectos da garantia de diretos das pessoas negras, incluindo reflexões quanto ao alto grau de violência contra negros e de seu encarceramento e ao atendimento às demandas de mulheres negras, por exemplo.

Para ampliar a participação e o debate, o CNJ lançou edital de chamada pública com prazo até 18 de agosto para o recebimento de sugestões formuladas via memorais escritos por outros interessados. As sugestões devem ter, no máximo, 10 páginas, seguir os critérios contidos no Edital de Convocação nº 001/2020 e serem enviadas pelo endereço eletrônico igualdaderacialnoPJ@cnj.jus.br.

Agência CNJ de Notícias

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