Uma iniciativa da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul (DPE/RS) em Porto Alegre evita que pessoas detidas em delegacias de polícia sofram tortura e outras violações a seus direitos – o que valeu à DPE/RS o Prêmio Innovare 2020, na Categoria Defensoria Pública. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é parceiro do prêmio de boas práticas do Sistema de Justiça brasileiro.
A Constituição Federal prevê que, quando uma pessoa é presa, ela deve ser informada de seus direitos, “entre os quais o de permanecer calada, sendo lhe assegurada a assistência da família e de advogado”, de acordo com o incisivo LXIII (63) do artigo 5º da Carta Magna. A presença de advogado acompanhando o cliente preso, no entanto, é raridade nas delegacias brasileiras. Com baixa escolaridade e renda, a maioria dos presos não pode contratar advogado. Cabe ao Estado assumir a função, mas não há defensores públicos em número suficiente para atender à alta demanda de prisões.
“O atendimento que prestamos é contramajoritário. A defesa criminal é mal vista pela sociedade – para muitos, direitos humanos é defender bandido –, mas também na própria carreira. Somos o único plantão a prestar esse serviço entre todas as defensorias do Brasil”, afirmou o defensor público e um dos integrantes do Plantão Criminal, Felipe Kirchner. Cerca de 50% dos cidadãos presos em flagrante no Rio Grande do Sul, calcula Kirchner, são atendidos pela equipe do projeto, que também conta com o trabalho de Alessandra Quines Cruz, Igor Menini da Silva e Sabrina Hofmeister Nassif, José Patrício Teixeira.
Atendimento
O Plantão Criminal funciona 24 horas por dia, inclusive em finais de semana e feriados. Os defensores atuam nas três delegacias que centralizam o registro de flagrantes na capital gaúcha, localizadas no prédio chamado Palácio da Polícia. Em 2020, foram registradas 61 mil ocorrências em Porto Alegre. Em 2019, as prisões realizadas pela polícia superaram a capacidade do estado. Com presídios superlotados, as pessoas acabaram em contêineres e carceragens de delegacias – onde alguns chegaram a passar mais de um mês – e até algemados dentro de viaturas da Polícia Militar.
A Defensoria moveu um habeas corpus coletivo e uma Ação Civil Pública contra a permanência de presos em carros e delegacias de polícia até que, em setembro de 2019, firmou-se um acordo entre as várias entidades do estado que atuam na segurança pública e na justiça criminal para transferir todos os presos para o sistema prisional. “Alegamos não só a violação aos direitos humanos do preso, mas também dos profissionais da segurança pública. A Polícia Militar estava em desvio de função, pois não é sua atribuição fazer guarda de preso. Do ponto de vista de gestão, é um absurdo ter uma viatura e dois PMs parados quando deviam estar patrulhando. Com o acordo, todo mundo ganhou”, afirma o defensor público.
Mudança de cultura
Há seis anos no Plantão Criminal da Defensoria, Kirchner explica que ainda é necessária uma mudança cultural. O hábito de a Polícia Militar conduzir todo e qualquer pessoa presa algemada, embora restrito a casos excepcionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2008, ainda é prática corriqueira. Por isso, quando o preso chega com as mãos atadas para trás, o defensor do Plantão Criminal tem de lembrar ao policial da Súmula Vinculante n. 11. “Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.”
A lembrança da súmula convence quase todos os policiais militares a abrir as algemas, segundo o defensor público Felipe Kirchner. “Em 90% dos casos, eles dizem ‘ok, doutor’, mas, em 10%, a resposta é diferente: ‘É assim, é procedimento’. Então eu digo que vou abrir um boletim de ocorrência por tortura e abuso de autoridade. É dissuasório”, afirmou. Em outros casos, o ambiente de truculência era responsável por violar direitos humanos básicos dos presos, quando eram proibidos de ir ao banheiro ou de beber água enquanto se formalizava o flagrante, na delegacia.
Alívio no sistema prisional
Em um estudo, com amostra de prisões de determinado período, o Plantão Criminal estima que, por meio do atendimento, obteve a liberação de 70% das pessoas detidas. O índice se deve à prestação assistência jurídica, assegurada constitucionalmente. Em condições normais, a maioria dos presos só vai ter assistência com o processo iniciado, depois de meses encarcerado. “Conseguimos minimizar o caos carcerário ao minimizar o número de prisões”, destaca o defensor público. Principal unidade prisional do estado, o Presídio Central tem capacidade para 1,8 mil presos e uma população carcerária de cerca de 4 mil presos.
Kirchner explica que o Plantão não trabalha para soltar os assassinos, latrocidas e ladrões de banco. Muitas prisões não têm justificativa legal, mas acabam ocorrendo devido à cultura punitivista da justiça criminal e por falta de advogado. “Nosso viés não é inocentar quem é culpado. Inocentes inocentados, e culpados punidos, mas dentro da legalidade.”
Quando alguém é preso por receptação, muitas vezes não há intenção de cometer crime. O que acontece com frequência é que a pessoa, sem dinheiro para comprar um produto na loja, acaba comprando na rua um produto mais barato, porém, roubado. Acontece até em transações via plataformas de vendas na internet, segundo Kirchner. “Nós ouvimos o nosso assistido, arrolamos os documentos para provar a transação econômica e deixa-se de fazer uma prisão em flagrante. Nós vivemos numa bolha. No mercado informal, as pessoas compram bens em situações em que não compramos.”
Casos de flagrantes forjados, que resultariam em prisões ilegais e injustas, também são evitados com a atuação de um defensor público. Crimes de posse de arma muitas vezes são desarmados com provas de testemunhas e até vídeos que provam o contrário.
A convivência 24 horas com o ambiente insalubre da violência às vezes leva os defensores a se preocuparem com o entorno, inclusive com as vítimas dos crimes. “Parece às vezes um problema de conflito de interesses, pois estamos ali para fazer respeitar os direitos de quem é preso”, afirmou.
Um exemplo foi a ação civil pública movida de 2019 pela equipe da Defensoria que resultou na construção de uma área própria para acolhimento de mulheres vítimas de violência doméstica e registro de flagrantes de agressões, o que até então acontecia em uma delegacia não especializada de Porto Alegre. As instalações foram inauguradas em janeiro deste ano.
Sobre o Prêmio Innovare
Criado em 2004, o Prêmio Innovare dá visibilidade a iniciativas inovadoras, desenvolvidas voluntariamente por agentes públicos, advogados e pela sociedade civil que aproximem o sistema de justiça da população e contribuam para o aprimoramento da Justiça. O Banco de Práticas do Innovare disponibiliza para pesquisa todas as 226 práticas premiadas em um universo de 7 mil práticas inscritas.
Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias