As políticas criminais e alternativas ao encarceramento em perspectiva comparada foram tema do primeiro painel do 3º Fórum Nacional de Alternativas Penais, nessa quarta-feira (29/9). O mediador do painel, professor da Universidade de São Paulo Maurício Dieter, apontou a relevância do julgamento cautelar da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que declarou o estado de coisas inconstitucional das prisões brasileiras. “O vertiginoso crescimento da população prisional nas últimas décadas demonstra que a quantidade de presos é, no final das contas, uma escolha política.”
Conselheiro do Instituto de Justiça da Tailândia, Kittipong Kittayarak destacou que a guerra às drogas em seu país foi central para o aumento do encarceramento chegando a ocupação de 115%, sendo que a grande maioria (82%) em razão de narcóticos. Ele destacou a implementação dos programas de justiça restaurativa e justiça comunitária com o uso de medidas alternativas para o encarceramento especialmente para mulheres, que teve um aumento expressivo nos últimos anos. “O sistema de justiça criminal tem de pensar sobre medidas para uma reabilitação mais justa e mais igualitária”, apontou Kittayarak, indicando que as alternativas devem ser aplicadas de modo sistêmico, com todas as partes envolvidas no processo.
Para a pesquisadora sul-africana de paz e conflito, Sarah Malotane Henkeman, o período do apartheid deixou evidente que as leis obedecem a ordem política do momento. “A criminalização é um ato político, o que me leva a perguntar: estaríamos precisando de alternativas ao encarceramento ou pensar na razão pela qual determinadas pessoas são encarceradas?”.
Ela alertou que a lógica da criminalidade desvia questões estruturais para o âmbito pessoal. “A pergunta é: o encarceramento em massa, atualmente, está relacionado à questão colonial? Para muitos de nós o passado ainda está presente. A negação do processo histórico é um impedimento para a construção de sociedades mais igualitárias.”
Professor de Direito do Instituto Tecnológico Autónomo do México, Miguel Sarre apontou a necessidade de se entender a superlotação não como um fenômeno natural espontâneo, mas como uma calamidade política. Para ele, manter ambientes prisionais dignos, que são também mais custosos, é incentivo para o desencarceramento, dado que, assim, “legisladores serão estimulados a descriminalizar e não penalizar condutas, usando o direito penal apenas em casos graves”.
Lançamento
Foi lançada, durante o painel, a tradução do Manual de Princípios Básicos e Práticas Promissoras sobre Alternativas à Prisão, elaborado originalmente pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime em Viena. O autor da publicação, professor emérito da Universidade de Nottingham Dirk van Zyl Smit, falou sobre a necessidade de se considerar questões locais e práticas na aplicação dos conteúdos do produto. “Nós escrevemos esse manual não apenas para uso acadêmico, mas para profissionais atuantes, para melhorar e mudar práticas no mundo inteiro, considerando que temos sociedades muito diferentes. Foi um grande desafio.”
Na segunda parte da manhã, o evento abriu três salas simultâneas. A primeira abordou obstáculos no campo jurídico, institucional e cultural para implementação de políticas de alternativas penais. “Tribunais em todos os Estados Unidos impõem multas como punição por pequenas infrações de trânsito e outras contravenções, com valores que por vezes se tornam impagáveis, intensificando processos de criminalização e ciclos contínuos de punição e pobreza”, pontuou Joanna Weiss, do Fines and Fees Justice Center (EUA), organização que trabalha para a superação desse quadro, inclusive por meio de reformas normativas.
Os processos de criminalização excessiva em Brasil e Colômbia foram destacados por Juan Sebastián, da organização Dejusticia. “A privação de liberdade tem sido apontada como a única forma de gerar segurança para a população, gerando um aumento acelerado da população carcerária.”
Para o desembargador Geder Gomes, do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA), é preciso retomar o debate público sobre criação de varas especializadas, de centrais de alternativas penais e de formação de profissionais na área. “Hoje são restritos os espaços para discutir esse tema, e o CNJ tem sido protagonista no estímulo a um direito penal humano e que busca alcançar seu resultado central, que é a ressocialização.”
Coordenador-geral adjunto do programa Fazendo Justiça, Talles Andrade mediou o debate lembrando que o modelo brasileiro implica em elevados custos políticos, econômicos e sociais. “É preciso superar esses obstáculos para mostrar não apenas aos operadores do Direito, mas à sociedade em geral, que há alternativas”.
Violência doméstica
Na sala que abordou violência doméstica, a secretária executiva da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Tania Reneaum Panszi, reforçou soluções alternativas ao sistema penal a também atenção à vítima. “Este é um problema social que exige dos operadores da Justiça uma atuação focada no acolhimento e proteção da vítima”.
Foi o que também reforçou o pesquisador Felippe Latanzio, do Instituto Albam, ao ressaltar a importância dos grupos reflexivos de gênero para os homens infratores. Para ele, a violência está na construção da masculinidade e por isso a intervenção precisa ser pensada também a partir desse contexto.
A juíza Juliana Silva Freitas, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), lembrou das desigualdades no acesso à justiça. “É necessário problematizar os dados sobre a violência contra mulheres e incorporar uma perspectiva de gênero na atuação do sistema de segurança pública.”
Acordo de Não Persecução Penal
A justiça negociada e o Acordo de Não Persecução Penal no Brasil foi o tema da terceira sala temática da manhã. Na mediação, o desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) Luciano Losekann destacou a importância da discussão interinstitucional, especialmente a partir da Lei 13.964/2019. Para o magistrado, a maior efetividade na resposta judicial deve ser almejada a partir do respeito a garantias e da consolidação de alternativas ao encarceramento.
Pesquisadora da organização britânica Fair Trails, Rebecca Shaeffer ressaltou a importância de que a implementação da justiça negociada no país se distancie do modelo de plea bargaining disseminado nos Estados Unidos, que muitas vezes evita o procedimento judicial em prejuízo a direitos dos acusados. “O plea bargaining não é suficiente para entender como o acordo de não-persecução penal funciona, mas só quero mencionar que algumas modalidades podem levar ao encarceramento se não foram bem geridas.”
Para o promotor de Justiça do DF Antônio Suxberger, não é possível comparar o modelo americano ao brasileiro, inclusive devido à diversidade de contextos. “Os casos penais chegam à Justiça, mas a Justiça não dá resposta. Temos que pisar os pés no chão a favor das alternativas penais.”
O defensor público do Rio de Janeiro Marcos Dutra reforçou as potencialidades do acordo de não-persecução penal se bem implementado, o que inclui procedimentos que evitem a banalização da defesa e impeçam a associação do instituto ao momento das audiências de custódia. A juíza do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) Katia Roncada trouxe a perspectiva de aplicação do acordo no contexto de justiça restaurativa. “Entendo plenamente a proposta utilitarista para desafogar o sistema. Mas no histórico de minha atuação, mesmo fazendo meu melhor, percebi que fiz parte da engrenagem do sistema. No entanto, a realidade é muito mais ampliada.”
3º Fonape
O 3º Fonape integra as atividades do programa Fazendo Justiça, parceria entre o CNJ e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), com apoio do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), que trabalha 28 ações simultâneas para a superação de desafios no campo da privação de liberdade. O programa tem ainda a parceria do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) nas ações sobre audiência de custódia.
A programação do evento será finalizada nesta quinta-feira (30/9) com a participação de painelistas nacionais e estrangeiros, além do lançamento de produtos de conhecimento elaborados no contexto do programa Fazendo Justiça.
Marília Mundim e Renata Assumpção
Agência CNJ de Notícias
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