Porto de Santos, 16 de outubro de 1928. Às 16h, trabalhadores que embarcavam bagagens de passageiros no vapor Massiliá, que seguiria para França, encontram o cadáver de uma mulher em uma mala com formato de baú. Era o corpo de Maria Féa, italiana de 21 anos que imigrara para o Brasil há cerca de oito meses. Após investigações, o crime foi desvendado e o marido da vítima, José Pistoni, italiano de 31 anos, apontado como responsável. Ele confessou o estrangulamento da esposa e a tentativa de se livrar do corpo o despachando no navio.
Pistoni passou por três julgamentos, sendo o último em 1937, de onde saiu condenado a uma pena de 31 anos de prisão. O caso, que alcançou grande repercussão, ficou conhecido como “O Crime da Mala”. O processo, que integra o acervo do Museu do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), é o primeiro episódio do Podcast Casos Forenses, uma iniciativa da instituição que, ao apresentar processos emblemáticos num formato contemporâneo, registra e amplia o alcance da história do Poder Judiciário e da sociedade brasileira.
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“Ao mesmo tempo que estamos preservando, também projetamos o futuro. A preservação da memória é um ato atemporal”, avalia o coordenador do Museu do TJSP, desembargador Octávio Augusto Machado de Barros Filho. Ele destaca que o tema vem recebendo atenção crescente dos tribunais, que investem em gestão da memória, preservação e valorização dos bens materiais e imateriais reunidos ao longo da história.
Barros Filho observa que o Judiciário é uma fonte constante de notícias e guarda registros importantes da história do país. “A história está registrada em processos físicos ou digitais no judiciário. ‘O Crime da Mala’ chamou atenção na época e até hoje desperta curiosidade. Como ele, existem vários outros casos emblemáticos nos arquivos do Poder Judiciário.” O desembargador ressalta, no entanto, que a divulgação dessas histórias, independente da mídia utilizada, exige pesquisas cuidadosas e uma série de cautelas para evitar a exposição de pessoas.
O TJSP foi vencedor da categoria Especial do Prêmio CNJ Memória do Poder Judiciário 2022 entre a Justiça estadual. A categoria Especial dessa edição teve como tema “Portal da Memória”, previsto na Resolução CNJ n. 324/2020 e no Manual de Gestão da Memória, e reconhece, divulga e dissemina a prática de virtualização dos acervos do Poder Judiciário. O Portal da Memória do TJSP se destaca pelas informações sobre a história, patrimônio cultural e vídeos. O acervo também é mantido por fóruns e comarcas no estado, que funcionam como unidades autônomas de preservação.
Além do pioneirismo no lançamento do Portal da Memória e do Podcast Casos Forenses, o TJSP também inovou com a promoção de visitas virtuais monitoradas tanto no Palácio da Justiça, sede do órgão na capital paulista, como no Museu no Palacete Conde de Sarzedas. No Museu, também é possível agendar visita telepresencial para percorrer a história e o acervo cultural do Judiciário paulista, nos ambientes do Palácio, do Palacete e de outros núcleos.
De acordo com Bruno Bettine de Almeida, servidor do TJSP que atua no Museu, o isolamento social provocado pela pandemia da Covid-19 foi um fator determinante para a criação das visitas virtuais. Segundo ele, foi acelerado o processo de virtualização do acervo, que já se encontrava em curso, e possibilitou a disseminação das visitas virtuais. “No contexto da pandemia, nos vimos quase obrigados a criar mecanismos para continuar atendendo demandas de faculdades e de interessados na memória do Poder Judiciário. A iniciativa gerou algo muito maior, que é o atendimento a alunos de outros estados.”
Retratos de época
Além de registros de crimes inadmissíveis em qualquer tempo, os museus do Judiciário também guardam anotações de outras barbaridades – mas que eram aceitas no passado. É o caso de um processo de 1865, o mais antigo da Seção Judiciária do Paraná do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), que mostra uma ação de execução fiscal envolvendo a comercialização de 150 negros escravizados. Apesar de envolver venda de pessoas, que depois foram a pé até São Paulo, o processo movido pela Fazenda Nacional contra o novo proprietário foi motivado, exclusivamente, pela ausência de recolhimento de impostos.
Outro registro encontrado nos arquivos da instituição, vencedora da categoria Especial do Prêmio CNJ Memória do Poder Judiciário 2022 entre os órgãos da Justiça Federal, revela o tratamento dispensado pelas autoridades a artistas. A atriz Loira Lombazzi se preparava para entrar em cartaz nos teatros e casas de espetáculos de Curitiba, na década de 1930. Porém, a Diretoria de Saúde local exigiu que a atriz apresentasse exames que comprovassem que ela não era portadora de sífilis. Indignada com a exigência, Loira Lombazzi recorreu ao Judiciário e o juiz aceitou os argumentos e negou provimento à exigência da Diretoria de Saúde.
Tour 360º da Sala da Memória da Justiça Federal no Paraná
A premiação conferida pelo CNJ é um reconhecimento ao passeio virtual disponibilizado pela Sala da Memória. O tour virtual 360º permite que a pessoa conheça o espaço e acesse processos antigos e acervo que inclui móveis, vestimentas, arquivos de jurisprudênciaJurisprudência é um termo jurídico, que significa o conjunto das decisões, aplicações e interpretações das leis A jurisprudência pode ser entendida de três formas, como a decisão isolada de um... More e caixas de controle de andamento processual. São objetos que revelam como era funcionamento da Justiça no passado.
Responsável pela unidade, Dulcineia Tridapalli é defensora do fortalecimento dos museus e espaços de preservação da memória do Judiciário. Ele aponta a necessidade de se conhecer o passado, a maneira e condições em que as gerações anteriores atuaram para, assim, valorizar o presente e buscar o aperfeiçoamento para o futuro.
“É muito chocante verificar que, num caso envolvendo comércio de pessoas, a ação do estado ocorre devido ao não recolhimento de imposto.” Ela enfatiza que tais processos retratam comportamentos da época em que ocorreram. “Na década de 1930, bastava dizer que era atriz para ser associado a uma vida promíscua e uma ameaças às famílias.”
Pioneirismo
Alzira Soriano empresta o nome a uma sala e ao museu virtual do Centro de Memória do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte (TRE-RN). Ela foi a primeira mulher a assumir uma prefeitura na América Latina, comandando a cidade de Lajes (RN) a partir de 1928. Na época, as mulheres brasileiras não votavam, mas uma lei estadual possibilitou que ela concorresse.
Essa história de pioneirismo político pode ser conhecida no Museu Virtual Alzira Soriano. Entre documentos e objetos doados pela família, que contam a história da prefeita, destaca-se uma máquina de costura. De acordo com a bibliotecária e responsável do Centro de Memória Eleitoral do Tribunal, Ana Paula Vasconcelos do Amaral Silva Araújo, a máquina de costura sintetiza a atuação de Alzira que, na década de 20 se preocupava com a emancipação feminina e ensinava costura para que as mulheres da região dispusessem de uma fonte de renda.
No Museu, é possível conhecer as folhas de registro do casamento de Alzira Soriano
Ana Paula explica que, com a pandemia da Covid-19, o tribunal optou por promover uma transição do acervo museológico para o espaço virtual, o que permite que um número maior de pessoas conheçam a história da Justiça Eleitoral do Rio Grande do Norte. “Com o isolamento provocado pela pandemia, sentimos a necessidade de não interromper as atividades e adotamos o modelo virtual. Dessa forma, podemos continuar oferecendo à sociedade acesso a todo material disponível e que estava impossibilitado de ser visitado.”
Além do Museu Virtual Alzira Soriano, o TRE-RN também conta com um Museu Virtual que conta a história da Justiça Eleitoral no estado. Nele, é possível conhecer o acervo, galerias, exposições permanentes e temáticas. A iniciativa garantiu o prêmio na categoria Especial do Prêmio CNJ Memória do Poder Judiciário 2022 entre os tribunais eleitorais. A atenção com a preservação da memória é tão elevada que, com a inauguração da nova sede em 2018, foi reservado um espaço especial, onde se reconstruiu e se encontra preservado o antigo plenário do TRE-RN.
Documentos históricos
Astolfo Serra, entre outras funções, foi padre, jornalista, escritor, jurista, interventor federal no Maranhão durante o governo provisório de Getúlio Vargas, diretor do Departamento Nacional do Trabalho e ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Maranhense, a família doou o acervo para o Centro de Memória e Cultura do Tribunal Regional do Trabalho da 16a Região (TRT16).
Entre os vários objetos, registros e documentos históricos, está uma carta de Luís Carlos Prestes ao ex-ministro. Eles se conheceram em 1925, quando a Coluna Prestes passou pela cidade de Mirador (MA), onde Serra era vigário. A carta do “Cavaleiro da Esperança”, assim como todo acervo do Centro de Memória e Cultura do TRT16, pode ser visitado presencialmente ou acessado pela internet.
O Centro de Memória e Cultura do TRT16 foi o vencedor da categoria Especial do Prêmio CNJ Memória do Poder Judiciário 2022 entre órgão da Justiça do Trabalho. Servidora do TRT16, Edvânia Kátia Sousa Silva, explica que o espaço é um patrimônio coletivo que guarda e conta a história da busca das por direitos junto à Justiça do Trabalho.
Na visão dela, assim como as áreas de comunicação e ouvidoria dos tribunais, os Centros de Memória são setores de relacionamento, que dialogam com a sociedade e contribuem para aproximar o cidadão do Judiciário. “Eu sempre digo que o Centro de Memória não é um depósito de cacarecos e peças velhas. Os museus têm funções importantes e promovem o diálogo com a sociedade.”
Conheça mais sobre o Museu da Justiça do Trabalho do Maranhão
Segundo Edvânia Kátia, todo o acervo da Justiça do Trabalho registra a busca das pessoas pelo reconhecimento de direitos. “Elas se veem naqueles documentos. Por isso, é fundamental estruturar essas unidades de forma que elas possam atender às demandas dos cidadãos.”
A servidora destaca que a virtualização de todos os objetos, documentos, vestimentas e processos possibilitou ao Centro de Memória superar o isolamento imposto pela pandemia da Covid-19. “Mesmo com o retorno das atividades presenciais, o museu virtual continua sendo buscado. Para a escola, por exemplo, o acesso via internet, representa agilidade, facilidade para os alunos e economia.”
Texto: Jeferson Melo
Edição: Márcio Leal
Agência CNJ de Notícias
Esta matéria é parte de uma série especial que apresenta as iniciativas vencedoras do 1º Prêmio CNJ Memória do Poder Judiciário, entregue no dia 13 de maio de 2022.