A impunidade de muitos crimes tem levado parte da sociedade brasileira a não confiar na proteção do Estado e a resolver conflitos interpessoais por conta própria, muitas vezes com o uso da violência. A opinião é do professor doutor Sérgio Adorno, diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), onde também é coordenador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV). Ele é um dos conferencistas convidados para o 2º Fórum Nacional de Alternativas Penais (2º Fonape), que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) realizará nesta semana (dias 24 a 27), em Salvador (BA). O tema do evento é “Audiência de custódia e a desconstrução da cultura do encarceramento em massa”.
“Uma vez que os crimes não são investigados, a população deixa de confiar nas instituições encarregadas oficialmente, publicamente, de conter os crimes. E muitas vezes acaba apostando em modalidades extraoficiais. Então, você vê em certos setores, por exemplo, o apoio à pena de morte sem julgamento, apoio ao linchamento, apoio às execuções de grupos de extermínio, às ações violentas da polícia”, afirmou, o professor da USP. No evento do CNJ, ele vai proferir palestra intitulada “Para entender o monopólio estatal da violência na sociedade brasileira contemporânea: onde (não) pretendemos chegar”.
Segundo afirma Sérgio Adorno, os altos índices de crimes contra a vida mostram que, no Brasil, o Estado ainda não detém o monopólio da violência. “Eu acho que nós precisamos conquistar o monopólio estatal da violência no Brasil, que nunca foi efetivamente conquistado. Quando você tem policiais, por exemplo, agindo em grupos de extermínio, você não tem monopólio. Se o policial está do lado do crime, então o monopólio estatal não existe. Isso sem falar em questões tradicionais como, por exemplo, de exércitos particulares no campo para conter conflitos rurais. Então o espectro de privatização da violência é muito grande no Brasil”, frisou Sérgio Adorno.
Embora considere esse monopólio decisivo para a contenção da violência, o professor ressaltou a necessidade de haver, ao mesmo tempo, um controle da sociedade civil sobre a atuação dos agentes do Estado. “Eu vejo isso (monopólio estatal da violência) como positivo; é um avanço das sociedades ocidentais. Agora, o problema é o controle que a sociedade civil deve ter sobre os eventuais abusos dos agentes do Estado no exercício do monopólio estatal da violência”, declarou o docente da USP.
Audiência de Custódia – Sobre esse tema específico, Adorno reconheceu que as audiências de custódia são importantes para a prevenção e identificação da violência policial, pois as pessoas presas têm sido apresentadas aos juízes em tempo razoável, menos de 24 horas após a prisão. Ele ponderou, no entanto, que, além de a pessoa presa denunciar a tortura e outros tipos de violência, esses casos devem ser devidamente apurados para responsabilização dos agressores.
“As audiências de custódia podem prevenir (a violência policial). Agora, isso depende muito de uma atuação maior do Ministério Público fiscalizando o uso abusivo da força. A redução do tempo de apresentação ao juiz permite que a pessoa presa fique menos vulnerável aos arbítrios do poder dos agentes encarregados de detenção e atividades correlatas”, disse o coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP. Por outro lado, observou, “eu acho que uma fiscalização, não só da corregedoria da polícia, que é uma corregedoria interna, como uma fiscalização externa, no caso o Ministério Público, eu acho que é fundamental para erradicar o problema dos maus-tratos, sobretudo da tortura, que ainda é um problema das prisões brasileiras, sobretudo nas cadeias públicas”.
Papel da Justiça – Sobre o papel da Justiça na contenção da violência, o professor Sérgio Adorno afirma que ela está defasada em relação à realidade atual. “Eu não estou aqui defendendo punição pura e simplesmente, eu estou aqui defendendo é que todo crime deve receber uma sanção, não importa a natureza da sanção. Para isso é preciso discutir um novo modelo de Justiça, porque o nosso modelo de Justiça é um modelo muito tradicional que foi forjado em sociedades que ainda não eram sociedades de massa, eram sociedades ainda com bases demográficas limitadas e com um número de crimes muito limitado”, disse Sérgio Adorno.
Para ele, a Justiça deve estar preparada para atuar diante de fenômenos como a chegada do crime organizado, sua internacionalização e todo o impacto sobre a vida urbana. “É preciso pensar a questão do monopólio também pensando num modelo de Justiça que seja eficiente e eficaz, que possa estar presente, que as pessoas, ao verificarem que a Justiça e a polícia cumprem suas funções dentro do estado de direito, ou seja, cumprem a lei sem o uso abusivo da força, elas comecem a confiar nas instituições, ou passem a confiar mais nas instituições, e a Justiça possa, de fato, prevalecer”, afirmou o professor.
Sociedade – Sérgio Adorno também falou sobre a parcela de responsabilidade da sociedade brasileira nos altos índices de violência no país. “A sociedade brasileira é uma sociedade ambígua. Ao mesmo tempo em que ela aponta para a solidariedade em muitos momentos, ela também é muito violenta; basta ver o que acontece com as mulheres dentro dos espaços domésticos, com as crianças nos espaços domésticos. Então, é uma sociedade muito violenta”, declarou.
Ele concluiu que “a sociedade brasileira, por razões que não nos cabe aqui discutir, está cada vez mais se radicalizando. É uma tendência universal, na verdade. A geração que saiu da ditadura militar e que condenou a violência e o uso político da violência, bem como a violência nas relações interpessoais, está perdendo essa batalha, porque a violência está outra vez sendo reivindicada como se ela tivesse legitimidade para, vamos dizer assim, defender e promover direitos ou coisas do gênero”.
Evento – O 2º Fonape é organizado pelo Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) do CNJ. O evento vai discutir e propor políticas para o aprimoramento da atuação dos magistrados nas audiências de custódia, que consistem na apresentação, à autoridade judicial, de toda pessoa presa em flagrante ou por mandado de prisão em até 24 horas.
O público-alvo do evento são juízes, servidores do Judiciário, integrantes dos Grupos de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMFs) dos tribunais, membros do Ministério Público, advogados, representantes da Defensoria Pública e gestores da Administração Penitenciária.
Acesse aqui a programação do 2º Fonape.
Jorge Vasconcellos
Agência CNJ de Notícias