Nicole* levava na mão um papel ao chegar à sala de audiência, uma redação que escrevera para mostrar à juíza como havia refletido sobre os erros que cometera. Aos 17 anos de idade, Nicole tinha um sonho, mas não o dinheiro para realizá-lo. Tomou, como tantos adolescentes em dúvida, a decisão errada: pediu R$ 200 emprestados a traficantes da comunidade onde mora e realizou o sonho de ver um show do ídolo, o sambista Diogo Nogueira.
Na hora de pagar a dívida ao tráfico, cometeu outro erro. Assaltou um taxista com uma arma de brinquedo. Apreendida pela polícia, acabou em uma unidade de internação, de onde poderia ter saído como mais um soldado do tráfico. Graças à intervenção de juízes do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), no entanto, a menina se reintegrou à sociedade. Mais que isso, Nicole livrou-se da facção criminosa e hoje trilha um caminho longe do crime.
A garota trabalha na Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae), segundo a juíza que presidiu a audiência que mudou o rumo da vida de Nicole, Vanessa Cavalieri. “Ela já não deve mais nada ao tráfico. Foi, inclusive, a um outro show do Diego Nogueira com o dinheiro que ganhou com o seu trabalho”, afirma a magistrada da Vara da Infância e Juventude e uma das criadoras do Projeto “Criando Juízo”, que atende adolescentes em situação de risco social – acolhidos em abrigos do estado ou condenados a cumprir medida socioeducativa.
Desde janeiro de 2016, quando o “Criando Juízo” começou a ser estruturado, 405 adolescentes que, como Nicole, cumpriam medida socioeducativa foram contratados como jovens aprendizes. Em 2017, a iniciativa ganhou reconhecimento nacional.
O projeto foi finalista do Prêmio Innovare 2017, um dos principais do Judiciário, entre dezenas de boas práticas inscritas por tribunais de todo o país. Para serem contratados, no entanto, é preciso estar matriculado no ensino formal. A exigência do projeto leva muitos jovens que já tinham abandonado os estudos a retomar a escolaridade. Os jovens selecionados passaram por curso de formação – dentro e fora das unidades de internação de adolescentes.
Valores do trabalho
Lancheiro, auxiliar de serviços gerais, mecânica de carros e informática foram alguns dos cursos preferidos dos jovens atendidos.
A simples oferta de atividades de treinamento desperta nos internos uma perspectiva de futuro, o que é difícil vislumbrar em meio a uma rotina de ócio, isolamento social e pouco aprendizado. Mesmo depois de contratados, eles seguem aprendendo.
A empresa precisa matricular seus jovens aprendizes em algum curso profissionalizante. “A gente acredita que a colocação deles no mercado de trabalho, além de afastá-los do tráfico, vai ensinar-lhes valorizar o trabalho, ter limites, seguir horários, ter responsabilidades, conviver com profissionais bem-sucedidos, ver que podem se esforçar e crescer dentro daquela empresa. Se veem inseridos num segmento da sociedade do que eles se sentiam excluídos”, afirma a juíza da Vara da Infância e Juventude Vanessa Cavalieri.
Mudança radical
Embora o trabalho seja a parte mais visível do projeto “Criando Juízo”, outros benefícios secundários proporcionados aos jovens participantes não podem ser subestimados. O ganho de autoestima, a recuperação da confiança da família e o contato com bons exemplos e referências humanas positivas são decisivos para mudar radicalmente a vida dos jovens, a ponto de livrá-los da sedução da vida do tráfico.
De acordo com a juíza responsável por acompanhar o cumprimento das medidas socioeducativas Lucia Glioche, a história de Nicole tem muito o perfil dos adolescentes que cometem ato infracional no estado. Muitos foram parar em uma unidade de internação por causa de tráfico de drogas, roubo ou algum ato contra o patrimônio – geralmente relacionados às drogas.
Deixar o tráfico
“O adolescente, quando pratica esses atos infracionais e é internado, tem uma facção. Muitas vezes ele quer sair, mas não consegue porque está devendo à facção criminosa. Por mais que pertença a uma facção, ainda tem dentro dele uma esperança, uma família que acredita nele”, diz a magistrada. Preparados para o mercado de trabalho, os jovens ajudam o empresariado a cumprir a Lei do Jovem Aprendiz (10.097/2000).
A norma estabelece que empresas com sete funcionários ou mais tenham pelo menos 5% de suas vagas preenchidas por jovens aprendizes ou estagiários. No entanto, as empresas fluminenses não cumprem a meta. De acordo com Superintendência Regional do Trabalho no Rio de Janeiro, um dos órgãos parceiros do projeto, deveria haver disponíveis 83 mil vagas para jovens com idade entre 14 e 24 anos. Em setembro, apenas 38 mil delas estavam preenchidas.
Potencial de expansão
Segundo o auditor-fiscal do Trabalho Ramon Santos, as seis mil empresas que não cumprem a lei no estado são convocadas para comprovar à Superintendência Regional do Trabalho o cumprimento da lei.
“Nós oferecemos uma escolha a quem não cumpre a cota do aprendiz: pagar uma multa ou fazer um acordo para aderir ao Projeto ‘Criando Juízo’”, afirmou Santos, representante do órgão do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) no estado.
As empresas que decidem cooperar são encaminhadas à Corregedoria do TJRJ, onde desde julho de 2017 funciona a Central da Aprendizagem. Em uma sala da Corregedoria, um servidor do Judiciário organiza informações enviadas por juízes da justiça juvenil de todo o estado em um cadastro único.
Atualmente o projeto contabiliza cerca de 700 nomes de jovens que foram internados por cometer um ato infracional e agora estão prestes a abandonar o mundo do crime e abraçar o mundo do trabalho – 150 deles estão aptos a começar no emprego amanhã. Segundo o corregedor-geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, desembargador Claudio de Mello Tavares, o alcance da medida é muito maior.
“Há cerca de quatro mil jovens em situação de risco social que podem fazer parte do projeto, ou porque cumprem alguma medida socioeducativa (internação, semiliberdade e liberdade assistida) ou estão acolhidos em algum abrigo do estado”, diz.Recuperar a confiança Uma das vidas resgatadas pelo projeto foi a de Miguel*, que recuperou a confiança da família que ele quase destruiu, após anos em conflito com o pai.
Policial militar, o homem dizia que o filho “parecia um bandido”, o quarto dele “era como uma cela da prisão” e que o garoto não tinha futuro. Um dia o jovem de 17 anos de idade pegou a arma do pai e o assassinou em casa, na frente da família. Internado, participou da tentativa de homicídio de um colega de alojamento em unidade de internação. A família então passou a repetir o discurso do pai; chamavam-no de “matador”.
“Ficou internado desde 2015 até outubro de 2017. Em janeiro deste ano, foi inserido no projeto. O que ele mais resgatou foi a confiança da família. Teve uma melhora interna, ele se reencontrou porque quis efetivamente participar da escola, se sentiu valorizado pelo trabalho, o que a família até então não conseguira fazer. Agora progrediu para a semiliberdade e continua participando das atividades do projeto”, afirmou a juíza da Vara de Execução de Medidas Socioeducativa, Lucia Glioche.
Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias