Olavo tomou um susto quando atendeu o celular em uma tarde de junho e do outro lado da linha falava alguém que se identificou como oficial de justiça. “Achei muito estranho. Perguntei: como conseguiram meu número?”, disse. Não era trote. Olavo Rodrigues* fora convocado para ser jurado pelo Tribunal do Júri de Brasília.
Em novembro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e os tribunais de Justiça realizam o Mês Nacional do Júri, um mutirão nacional de julgamentos – homicídios, sobretudo – nos tribunais do júri. A seguir, três brasilienses convocados para o mês de julho relatam suas experiências como jurados à Agência CNJ de Notícias.
Dias depois da ligação telefônica, chegou a intimação na caixa do correio de Olavo. E Olavo passaria um mês à disposição do tribunal. Todos os dias em que houvesse júri marcado, Olavo deveria se apresentar, de manhã cedo, ao juiz responsável no tribunal.
Para Blaine Deolindo, que também recebeu a convocação por telefone, não foi uma boa surpresa. “Sinceramente, fiquei bem insegura quanto ao trabalho. Não queria participar. Fiz um pedido formal para ser dispensada, mas o juiz me disse que não liberaria ninguém porque o número de jurados já estava muito restrito”.
O serviço do júri é obrigatório. Não comparecer pode resultar em condenação por crime de desobediência (desobedecer a ordem legal de funcionário público, segundo o artigo 330 do Código Penal), e multa de um a dez salários mínimos, de acordo com o Código de Processo Penal.
Conselho de sentença
Quarta-feira, 4 de julho de 2018, nove horas da manhã. No auditório do Fórum Milton Sebastião Barbosa, centro de Brasília, poucas pessoas ocupam as cadeiras da plateia – entre elas estão Olavo e Blaine. Pela primeira vez, os nomes do trabalhador autônomo e da advogada estavam dentro de uma pequena urna de madeira usada para realizar o sorteio que formaria o conselho de sentença do julgamento a seguir, com sete das 21 pessoas convocadas para atuar como juradas naquele mês.
De acordo com o juiz do Tribunal do Júri de Brasília, Paulo Afonso Correia Lima Siqueira, a atuação do jurado é uma outra forma de manifestação do direito ao voto. “Naquele momento que o jurado faz o julgamento, ele não é um representante do Estado. Ele é o próprio povo. Como diz o artigo 1º da Constituição, ‘todo poder emana do povo’”, afirmou o juiz.
Responsabilidade e imparcialidade
Ao contrário de Olavo e Blaine, sentados a seu lado no plenário do Tribunal Júri, o servidor do Banco Central do Brasil, Enauro Gonçalves do Nascimento já tinha experiência em júri popular. Quando ainda cursava faculdade de Direito, 10 anos antes, participou de um julgamento, mas não como jurado. Enquanto cumpria estágio do seu curso, Enauro atuou como assistente de defesa de um acusado no mesmo auditório onde se sentam juiz, promotor, advogado, réu, testemunhas e o conselho de sentença.
Enauro guarda daquela experiência a responsabilidade que recai sobre os jurados em um julgamento desse tipo. “O autor do crime em geral vem de um meio social, cultural e econômico muito desfavorecido, o que torna muito difícil de julgar o crime cometido. É muito mais complexo que um outro tipo de crime porque se trata de uma decisão que vai mudar a vida de uma pessoa. Para sempre”, disse.
Além de responsabilidade, o jurado precisa de outro atributo único para julgar acusados por homicídios ou tentativas de homicídios: imparcialidade. Em uma sociedade cada vez mais amedrontada pela sensação de insegurança nas cidades, é difícil encontrar um jurado disposto a ouvir a versão do suspeito de assassinato, sobretudo quando a pessoa já foi vítima ela mesma da violência urbana. Enauro não se revela um caso típico.
“Há muitos anos, fui assaltado, levei três facadas, tive hemorragia, mas fui socorrido a tempo. Passei uma semana internado no Hospital de Base (o maior de Brasília), com um dreno para tirar o sangue da cavidade pulmonar. Apesar dessa experiência negativa, não cheguei ao júri com vontade de condenar, de fazer justiça a qualquer custo”, disse. Enauro atribui a “tranquilidade” que vivenciou nos quatro julgamentos para os quais foi sorteado à formação acadêmica (também é graduado em Economia), às suas vivências e à sua idade.
Em um dos casos, inclusive, votou para desclassificar uma agressão com arma branca de tentativa de homicídio para lesão corporal. Quando uma tentativa de homicídio é desclassificada, o crime é transferido para ser julgado em uma vara criminal, não pelo júri popular. “Teoricamente, como fui vítima, poder-se-ia esperar que eu condenasse automaticamente o réu. Mas foram uma ou duas facadas. Se ele quisesse matar, ele não pararia de golpear o homem. Não foi letal. No meu íntimo, até poderia pensar que o cidadão teve a intenção de matar. Quem poderia dizer com certeza qual era a intenção dele? Mas não tinham nos autos do processo elementos que permitissem concluir que houve tentativa de homicídio. Minha formação em Direito me permite fazer análise melhor e ser mais justo”, afirmou.
Soberania do veredito
Na última etapa de um julgamento no tribunal do júri, o conselho de sentença se reúne e se decide pela absolvição ou condenação do réu, por meio do voto. De acordo com a pergunta feita pelo juiz, lida em voz alta aos sete jurados reunidos em torno de uma mesa, o jurado coloca um papel com sua reposta dentro de pequena urna de madeira. Como em uma eleição, vence a opinião apoiada pela maioria. Diferente de outros julgamentos, em que o magistrado precisa fundamentar sua resposta, os integrantes de um conselho de sentença têm direito à chamada “íntima convicção” para decidir.
“A decisão do jurado tem uma qualidade diferente da decisão judicial do juiz togado (dos quadros do Poder Judiciário): a proteção da soberania dos vereditos. Em razão desse princípio, a segunda instância, formada por desembargadores, não pode reformar o julgamento dos jurados. Em caso de falha, processual, pode-se anular a causa, mas submete-se (o processo) a novo júri popular”, disse o juiz do Tribunal do Júri de Brasília, Paulo Afonso Correia Lima Siqueira.
Segundo o promotor público que atua na mesma vara, Leonardo Jubé, conta-se com o “discernimento” dos membros da comunidade chamados a julgar seus semelhantes. “O que se espera é a efetivação dos valores éticos e morais, que, acreditamos, ainda são permeados na maioria da população. Valores éticos e morais que façam com que a pessoa, uma vez separado o joio do trigo, escolha o trigo. Isso vale para qualquer forma de democracia direta, seja nas urnas, seja naquela nossa pequena urna do nosso tribunal do júri. É ali que (o jurado) vai dizer o que espera de uma vida em comunidade”, afirma o promotor.
Transformação
No início de cada mês, antes da primeira sessão do júri, o juiz responsável pelo Tribunal do Júri de Brasília, Paulo Afonso Correia Lima Siqueira, faz uma palestra em que adverte os jurados presentes sobre o potencial transformador de passar pelo júri. “A pessoa é uma antes de passar pelo tribunal do júri e é outra ao sair do tribunal do júri. O leigo não tem ideia do que é o tribunal do júri. Com o passar do mês, ele vê a dificuldade do juiz”, diz Lima Siqueira.
Olavo não tinha ideia do que o tribunal do júri guardava para ele; sequer um conhecido que tivesse passado pela experiência. “É muito impactante. Muito forte. A gente sabe que o ser humano é mau, mas quando a gente se aproxima mesmo como acontece no tribunal do júri, é muito mais real a experiência”, afirmou.
A advogada Blaine Deolindo lembra que o desgaste “mental e emocional” da tarefa a exauria ao final dos julgamentos, mas hoje conta como teve o privilégio de ser sorteada para viver a experiência de jurada em seis dos 11 júris populares realizados em julho. “Lembro dos casos com riqueza de detalhes. O tribunal do júri me transformou complemente. Em termos pessoais, me proporcionou momentos de reflexão sobre muitos valores, como o amor ao próximo, sobre valorizar a vida e a virtude da paciência, que evitaria que tantos momentos de raiva resultassem em um estopim e gerassem transtornos muito grandes para muita gente”, afirmou a advogada.
O nome de Olavo, Blaine e Enauro continua na lista dos cidadãos de Brasília que deverão ser convocados como jurados pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) em 2019.
*Nome e sobrenome fictícios, a pedido do entrevistado
Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias