J.C.* tinha 10 anos quando foi cooptado pelo tráfico. Sua história – como a de muitas crianças em conflito com a lei – espelha a vulnerabilidade extrema que, dificilmente, não termina em uma história de vícios, crimes e prisão. Há três anos, J.C. foi detido e encaminhado pela Justiça para cumprimento de medida socioeducativa (que corresponde a pena para maiores de 18 anos de idade). Atualmente, o jovem presta serviço no Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM), em um projeto voltado à profissionalização de jovens como ele.
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J.C. não é o único. Neste momento, uma dezena de jovens trabalha nas unidades judiciárias do Amazonas, por meio de uma parceria com o Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE). No ano passado, o tribunal aderiu a outra boa prática e, em menos de um ano, 60 jovens já haviam conseguido seus certificados profissionalizantes, oferecidos pela Escola do Legislativo, da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas (ALEAM), em parceria com o Judiciário.
“Qualquer ação voltada para a profissionalização dos jovens e a reinserção deles na sociedade é benéfica”, diz o juiz auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Márcio Alexandre, do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DPJ/CNJ). Entre outras funções, o magistrado tem a tarefa de verificar se o atendimento aos adolescentes em conflito com a lei está de acordo com o previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase).
Oportunidades raras
Dar uma chance aos egressos – sejam eles adultos ou menores de 18 anos – é um grande desafio. “Seja por preconceito, medo ou indiferença, a falta de oportunidade no mercado formal de trabalho empurra muitos egressos a se envolverem novamente no crime. A sociedade clama por paz, mas frequentemente repele essas pessoas”, completa o juiz, sobre a falta de oportunidades oferecidas àqueles que já cumpriram medidas socioeducativas.
A parceria com o CIEE prevê que empresas privadas, interessadas em contribuir com a cota social, paguem ao projeto o curso oferecido aos jovens, contratados como menores-aprendizes. As empresas não absorvem diretamente a mão de obra oferecida. Os jovens recebem meio salário mínimo, vale-transporte, tem carteira assinada e trabalham quatro horas por dia. O tempo é dividido entre cursos variados no CIEE e o trabalho nas unidades da Justiça amazonense.
“É importante dizer que estamos apenas cumprindo o ECA, que aborda o caráter da ressocialização dos jovens. Isso é aplicar a lei de maneira prática”, afirmou o juiz titular da Vara de Execução de Medidas Socioeducativas, Luiz Cláudio Cabral Chaves.
J.C. é exemplo da importância da recolocação profissional na vida de um jovem em situação de vulnerabilidade social ou em cumprimento de medidas socioeducativas. Seu pai está preso; a mãe, desaparecida há anos. J.C. mora com dois irmãos e a avó paterna em um bairro violento e carente de Manaus.
Fome
A família, de pouquíssimos recursos, não raro, passa por privação alimentar. Irmãos e avó paterna se mantêm com recursos do Bolsa Família. Do lado de fora da pequena casa, é imensa a oferta de drogas e a possibilidade de entrar no mundo do tráfico e de outros crimes. Com certeza, teriam uma vida mais confortável, apesar de insegura.
Previstas no artigo 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), as medidas socioeducativas são aplicadas pelos juízes das varas de Infância e juventude aos menores de 12 a 18 anos de idade e têm caráter predominantemente educativo. A profissionalização do jovem, segundo a norma, é uma etapa do seu processo educativo (art. 62).
O acesso a cursos e empregos não acontece de um dia para o outro. Antes, há um passo fundamental: as visitas periódicas dos juízes às unidades de internação, como preconizado na Resolução CNJ n. 188/2014. Conhecer mais detalhadamente a situação dos adolescentes permite agilizar o cumprimento dos Planos Individuais de Atendimento (PIAS). O magistrado também recebe um relatório psicossocial do jovem, elaborado pela equipe multidisciplinar do tribunal. O grupo é pequeno, e trabalha com poucos recursos.
Recuperação
“A conversa faz parte do processo de recuperação desses jovens. Eles se sentem orientados, visíveis, enxergados pelo Estado. Sabem que têm um caminho a seguir, que não estão abandonados. Isso pode ajudar a redirecionar suas vidas, que já estão, em geral, em contextos de muita vulnerabilidade e risco”, diz Jane Nagaoka, assistente social da Coordenadoria da Infância do TJAM. Além da esperança, a aproximação com os adolescentes reduziu a tensão nas unidades e o risco de rebelião.
Não há uma pesquisa que relacione os egressos do sistema de internação com a entrada deles no sistema carcerário. Mas Luiz Cláudio Cabral Chaves acredita que a reincidência diminuiu. Além do calendário de visitação, o juiz diz que a família é essencial no projeto. “Se não falarmos com eles, não adianta. Trabalho e religião ajudam muito no redirecionamento dos meninos. E a família é fundamental. Não abandonem seus filhos”, apela o magistrado.
A assistente social diz que é possível perceber como a violência vai absorvendo a história dos meninos e meninas em situação de vulnerabilidade e, aos poucos, as infrações vão aumentando, em número e gravidade. “Primeiro, ele é pego por um furto; depois, por um roubo. Há uma gradação que poderia ser evitada com projetos que inserissem essa criança em um ambiente diferenciado”, diz.
O futuro desses adolescentes ainda é um ponto de interrogação para a Justiça. Não há estudo que mostre o grau de efetividade nas medidas socioeducativas ou revele quantos desses jovens voltaram ao sistema de Justiça (foram presos). Luiz Cláudio Cabral Chaves diz que pretende preencher essa lacuna e contratou uma equipe para levantar essas informações. A ideia é que, de posse dos dados, seja possível criar políticas públicas mais efetivas para esse público.
No início do mês, o diretor do Centro Integrado de Atendimento Inicial ao Adolescente/TJAM, desembargador Ari Jorge Moutinho da Costa, recepcionou e reuniu-se com os cinco primeiros jovens beneficiados pelo projeto Novos Rumos. Integrados ao programa na última semana, os jovens começaram a atuar no Judiciário Estadual na condição de menores-aprendizes.
Levantamento feito pelo DMF/CNJ, no final do ano passado, revelou o quantitativo de menores infratores em regime de internação no Brasil: cerca de 22 mil jovens recolhidos em 461 unidades socioeducativas espalhada em todo o país. São Paulo é o estado com maior número de adolescentes internados, quase 8 mil. O Amazonas tinha 77 adolescentes, penúltimo no ranking. Atrás apenas de Roraima, que possui 71 adolescentes internados.
Regina Bandeira
Agência CNJ de Notícias