Ellen Gracie Northfleet*
Persiste na atualidade do noticiário a discussão da violência doméstica e familiar, sobretudo contra a mulher que sofre historicamente pela desigualdade e discriminação.
O Estado brasileiro, no entanto, como poder público e sociedade civil organizada, comprometeu-se internacionalmente com a eliminação de todas as formas de violência contra a mulher na chamada Convenção Internacional CEDAW (Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women), e vige no Brasil a lei n o11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como a Lei Maria da Penha, editada em conformidade com esse compromisso.
Referida legislação instituiu Juizados Especiais de violência doméstica e familiar contra a mulher, com perfil peculiar e destinados a mudar a concepção de justiça penal quando relacionada com as questões de violência intrafamiliar, definiu condutas ilícitas e penalidades, deu tratamento apropriado aos diferentes passos da investigação policial e administrativa, e criou medidas protetivas de urgência, de assistência judiciária e de atendimento e acompanhamento multidisciplinar.
Além disso, a Lei Maria da Penha teve o enorme significado de produzir um corte no modelo tradicional de prestação de justiça revalorizando o espaço de proteção da vítima mulher, deu relevo à possível preservação das relações familiares e, principalmente, recuperou a noção de igualdade e não-discriminação entre os parceiros, fator cultural importante que naturalmente problematiza a aplicação da lei penal nas questões de gênero.
Os Tribunais de Justiça já se movimentam para a implantação dos referidos juizados, e a conscientização dos diversos segmentos que intervêm no exercício da jurisdição estatal revela um crescente interesse institucional pela efetivação de uma política judiciária de compromisso com os postulados igualitários e não-discriminatórios em face da mulher. É correto reconhecer que esse trabalho institucional e administrativo, apesar das inúmeras dificuldades práticas, não tem sido obstáculo maior para a edificação de uma cultura crítica dos trabalhadores judiciais.
Mas o que chama a atenção dos profissionais é a inédita oportunidade de repensar a atuação da justiça penal pelos novos paradigmas agora instituídos para a repressão da violência contra a mulher e que podem se estender para outras províncias do direito penal e processual.
Nessa perspectiva, a Lei Maria da Penha oferece um patamar de referência processual afirmativa e de sensibilização dos atores judiciais e da opinião pública para que não se reproduza, como sempre, a representação ideológico\/cultural de dominação do homem sobre a mulher, de ricos sobre pobres e de incluídos sobre socialmente excluídos.
Os conflitos de gênero quase sempre são revelados ao público pelo processo penal. No entanto, coibir a violência doméstica é uma responsabilidade de todos os agentes públicos e privados, e nessa atividade assume especial significação o trabalho da mídia pelo qual se divulgam os acontecimentos relacionados.
Esse trabalho da imprensa pode ser uma ferramenta preciosa na correta apreciação dos eventos de gênero, cujos reflexos na ação judicial são obviamente evidentes, analisando-os ou reavaliando-os através de perspectivas que tenham em conta a discriminação e a desigualdade real.
Pode estar aí um bom mote para as comemorações do dia internacional da mulher.
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(*) ELLEN GRACIE NORTHFLEET é presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça
Publicado no jornal O Globo (RJ) – 08 de março de 2008