Artigo: Justiça, um programa social

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Joaquim Falcão*

Pouco a pouco, o Poder Executivo, o governo federal, vai dando colaboração definitiva para a reforma do Judiciário. Vai enfrentando práticas antigas e ineficazes. Vai apontando novos rumos. Vai delineando nova política de judicialização de seus interesses. A direção está correta. Será a maior contribuição que poderá ser feita para uma Justiça ágil. Para uma cidadania livre e legal, e não permanentemente ameaçada de ilegalização. Se implementada, mudará a natureza da discussão sobre reforma do Judiciário. Não haverá pressão por novas varas, novos juízes, novos prédios. Mas por novas práticas, novas alternativas pré-judiciais. E tudo sem novas leis. Vejam estes dois exemplos.

A fase administrativa do processo tributário leva, em geral, quatro anos. A fase judicial leva outros 12. Se um contribuinte – pessoa física ou empresa – discutir um tributo com a Receita Federal, durante 16 anos constará em todos os seus documentos fiscais essa disputa. Uma espada estará sempre ameaçando sua cabeça e seu bolso. Durante quase uma geração, o governo terá que pagar os custos administrativos desses processos, taxas judiciais, salários de procuradores, além dos custos do Judiciário, sempre disponível para apreciar, processar e julgar.

Em outras palavras: todos perdem. O fisco, o contribuinte, o Judiciário. Esse sistema de cobrança é reconhecido, por todos, inclusive pela Fazenda Nacional, como ineficaz. É desperdício orçamentário. Somente 1% do estoque da dívida, cerca de R$ 600 bilhões, ingressa a cada ano no Tesouro Nacional. Ou seja, se a dívida não crescesse mais, levaríamos 100 anos para que a cobrança judicial fosse eficaz, supondo que o bom direito estivesse do lado do fisco.

Por isso o procurador-geral da Fazenda, Luis Inácio Adams, está propondo nova lei geral de transação em matéria tributária. Inovadora. Com possibilidades, inclusive, de usar os bancos oficiais, a Caixa e o Banco do Brasil, para financiar o contribuinte devedor, parcelando a dívida e perdoando multas, por exemplo. Beneficiará, sobretudo, os pequenos e médios eventuais devedores. Segundo a coordenadora-geral da Dívida Ativa da União, Nélida Araujo, apenas 10% dos contribuintes são responsáveis por 60% do estoque da dívida ativa da União.

No mesmo sentido, a Previdência Social e a Advocacia-Geral da União estão propondo o Programa de Redução de Demandas Judiciais do INSS. Estima-se que existam, hoje, 5 milhões de processos contra o INSS. São 180 mil novos processos por mês, a um custo acumulado de bilhões apenas para sua manutenção. Não há orçamento federal que agüente. O motivo da judicialização é a insatisfação do cidadão provocada quando o agente do INSS interpreta a lei com medo de fraudes e acaba sendo exigente demais: nega os pedidos de aposentadoria, os auxílios-doença, os salários-família, as pensões e por aí vamos. Com maior controle da interpretação administrativa das leis, que, atualmente, tem um viés pró-Estado, pode-se reduzir em até 1 milhão por ano o número de processos contra o INSS.

Com essas duas iniciativas, o governo federal mostra-se pronto para implantar o que, talvez, seja um dos programas de maior e mais largo alcance social. Tão importante quanto um programa como o Bolsa Família, ou outras políticas públicas nas áreas de educação e saúde. Pois, assim como esses, trata-se de política pública voltada para a prestação de um direito fundamental do cidadão. Mais especificamente, para tornar eficaz o direito a uma Justiça eficiente, capaz de apreciar e decidir conflitos sociais em tempo razoável. O que irá beneficiar, literalmente, milhões de brasileiros. Mais ainda, pode ser a maior contribuição que se possa dar para a desestatização da pauta do Judiciário, encontrando-se pontos de convergência, neste momento tão arisco para ambos os lados.

Mais do que programas governamentais, os exemplos citados sinalizam uma mudança na vetusta cultura da “judicialização a qualquer preço”. Mas cultura não se muda tão rapidamente. É preciso que se consolide e se expanda. Para isso, é necessária uma série de passos ainda por dar. Primeiro, que os estados e municípios também criem seus programas de redução e transação. Tanto a Receita como a AGU poderiam dar suporte técnico aos estados. Segundo, é preciso modernizar a formação dos procuradores, prepará-los para as novas habilidades profissionais extrajudiciais. A começar com a ênfase no ensino da mediação, conciliação, negociação e programas dessa natureza nas faculdades de direito. Finalmente, é preciso que as lideranças empresariais, os congressistas, os juízes e todos os profissionais jurídicos caminhem juntos e rápido na mesma direção.
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(*) Joaquim Falcão é diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (RJ) e membro do Conselho Nacional de Justiça

Publicado no jornal Correio Braziliense (DF) em 17/07/2008