Ação em escola desperta solidariedade e combate xenofobia

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Foto: RTPress Fotografia
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Conhecimento e solidariedade. Esses foram os antídotos escolhidos pela professora de matemática Simone dos Santos Catão para combater a xenofobia que brotava na Escola Olavo Brasil Filho, em Boa Vista, com a presença de venezuelanos na sala de aula. Os impactos percebidos na rotina dos moradores da capital de Roraima com a imigração em massa afetavam a receptividade aos estrangeiros que, além de superar as barreiras do idioma e as dificuldades de adaptação ao novo país, também sofriam bullying na sala de aula. Para reverter a situação e combater a animosidade entre os alunos, a professora criou o programa “Duas culturas e uma nação”, que inseriu estudos sobre a realidade e hábitos do país do vizinhou, promovendo a integração e solidariedade entre na escola.

Além de avanços pedagógicos e de estabelecer um relacionamento solidário no ambiente escolar, a iniciativa refletiu na comunidade, que se tornou mais receptiva aos venezuelanos. A repercussão positiva do programa fez com ele fosse selecionado para participar da 16ª edição do Prêmio Innovare como modelo de boa prática na categoria “Justiça e Cidadania”. A premiação tem o objetivo identificar, divulgar e difundir práticas que contribuam para o aprimoramento da Justiça no Brasil.

Impacto migratório

O êxodo impactou Roraima, principalmente as cidades de Pacaraima, porta de entrada para o Brasil, e também Boa Vista, primeiro estágio dos venezuelanos no país. O processo se intensificou nos últimos meses de 2017 e, somente a capital, uma cidade com cerca de 300 mil habitantes, recebeu mais de 70 mil imigrantes. A expansão populacional afetou todos os setores da vida da comunidade, alcançando infraestrutura, serviços de transporte, saúde, segurança e abastecimento. Boa Vista ganhou 13 abrigos com cerca de 6 mil pessoas em cada e, ainda assim, o número de moradores de rua teve grande expansão. A nova realidade despertou a xenofobia, gerando, inclusive, episódios de violência contra os venezuelanos.

A hostilidade das ruas refletiu nas salas de aula e os alunos venezuelanos viraram alvos de bullying, não se integravam ao cotidiano escolar e tinham rendimento baixo.  A situação chamou a atenção de Simone Catão. Ela percebeu que a dificuldade dos alunos estrangeiros transcendia os problemas de adaptação e a barreira do idioma. Professora de 210 alunos do ensino fundamental e médio, viu o número de venezuelanos saltar de seis em 2017, para 62 no ano seguinte, a maioria originários de cidades como Santa Elena de Uairén, Puerto la Cruz e Ciudad Bolívar. Segundo ela, os venezuelanos eram chamados de “veneca”, tratamento pejorativo que se juntava à marginalização dentro da escola e produzia barreiras ao aprendizado. “Percebi que eles estavam com a autoestima abalada e isso interferia no aprendizado”, afirma.

A professora inseriu nos planos de aula questões que tratavam da realidade venezuelana. A formulação dos problemas envolvendo matemática financeira passou a tratar de hiperinflação, comparação e evolução de preços de produtos tendo como foco a economia do país vizinho. “Tratamos do efeito do reajuste de 25% no preço de um quilo de arroz em um dia e discutimos como era possível o valor de um ovo ser equivalente a 90 litros de gasolina”, recorda. O tema que dominou as aulas de matemática passou a ser abordado em outras disciplinas, promovendo um envolvimento de alunos e professores. “Assim, desenvolvemos o programa “Duas culturas e uma nação”, que alcançou a comunidade escolar e estimulou o acolhimento dos venezuelanos na nossa escola”, destaca.

O programa fez com que a cultura do país vizinho passasse a ser tratada pelos professores de outras áreas. A história, geografia e cultura venezuelana viraram tema de aulas, despertando o interesse dos alunos brasileiros e estimulando a participação dos venezuelanos. O estudo de espanhol despertou maior interesse e, de acordo com Simone Catão, passou-se a “trabalhar termos acolhedores”. As placas indicativas da escola passaram a ser bilíngues e a realização e rodas de conversas entrou para o cotidiano escolar. “Abordávamos a falta de solidariedade com os vizinhos venezuelanos que enfrentavam dificuldades. Tratamos também de dramas como o da família de seis pessoas que caminhou até Boa Vista sem receber carona”, ressalta.

A conjuntura da Venezuela, as leis de migração e o tratamento dado à questão pelos organismos internacionais, bem como a xenofobia, se tornaram temas recorrentes na escola, que trabalhou a produção de textos e poemas sobe essas questões. Os alunos produziram cartilhas que foram, inclusive, compartilhadas com outras escolas. “Nossos debates produziram mudanças de comportamento e tiveram, como consequência, a adoção de formas de tratamento mais respeitosas com os alunos estrangeiros. Contribuíram para eliminação do bullying, fizeram despertar a solidariedade e promoveram a auto estima dos alunos venezuelano”, afirma a professora. Ela enfatiza que a mudança de postura dos alunos alcançou também os país, que também modificaram a percepção e o tratamento em relação ao imigrante.

“Os alunos passaram a questionar os termos preconceituosos usados pelos pais. Observei que, ao educar o aluno, educamos os pais, o que refletiu na mudança da receptividade em toda comunidade”, destaca. O cardápio da escola também foi incrementado com comidas típicas e os alunos venezuelanos ensinaram os colegas brasileiros a preparar arepas, iguaria elaborada com farinha de milho. Mães venezuelanas foram à escola para mostrar e ensinar o joropo, dança típica do país que concentra influências nativas, africanas e europeias.

A professora lembra que, durante uma atividade escolar, os venezuelanos foram questionados sobre a maior dificuldade que enfrentavam no Brasil e foram unânimes em apontar que era a dificuldade na obtenção de plantas e ervas medicinais que usavam como chás curativos. “Foi o momento mais emocionante e marcante para mim, porque decidimos plantar um jardim com as ervas que eles usavam, como capim santo, arruda, hortelã, alecrim, amora, pitanga”, relembra. O espaço, aberto para as famílias se servirem com as ervas, foi batizado como Jardim Shailly, nome de uma aluna que deixou a escola no processo de interiorização e foi homenageada pelos colegas.

Observatório

As proporções alcançadas pelo êxodo venezuelano para o Brasil incidiram na mobilização de diversas instituições brasileiras. A questão passou a ser acompanhada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que inseriu o tema na pauta do Observatório Nacional sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade e Grande Impacto e Repercussão. O Observatório é uma iniciativa conjunta do CNJ e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para o aperfeiçoamento da atuação das instituições em ocorrências de grande impacto e repercussão, incluindo a implantação e modernização de rotinas, prioridades, organização, especialização e estruturação dos órgãos competentes de atuação do Poder Judiciário e do Ministério Público.

O presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Tofolli, esteve em Pacaraima e em Boa Vista no mês de julho e constatou a necessidade de ações mais incisivas do Poder Judiciário para minimizar os problemas o grande impacto do fluxo migratório e amenizar as dificuldades de inserção dos venezuelanos. Entre as medidas, promoveu-se a mobilização dos órgãos ligados ao Judiciário para agilizar o fornecimento de documentação para os imigrantes. A medida é fundamental para a implementação das ações de interiorização das famílias, uma das ações da Operação Acolhida, conduzida pelo Exército brasileiro.

Venecos

No período do boom do petróleo, a Venezuela atraia muitos migrantes colombianos em busca de trabalho. No novo país, eles tentavam se inserir na sociedade adotando a cultura, vestimentas e sotaque. Além do modismo, era uma forma de evitar problemas com autoridades migratórias.

Quando regressavam à Colômbia, exibindo os novos hábitos, vestimentas, linguajar e costumes, eram tratados como “venecos” pelos compatriotas. A palavra denunciava, de maneira pejorativa, o venezuelano falso. Significava venezuelano da Colômbia.

Com a decadência econômica da Venezuela e a inversão do fluxo migratório, os colombianos ressignificaram a palavra e passaram a aplicar o insulto que usavam entre eles para o venezuelano que chegava ao país em busca de melhores condições de sobrevivência.

Sobre o Prêmio Innovare

O Prêmio Innovare é uma iniciativa do Instituto Innovare, com a parceria institucional do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep),  Associação dos Juízes Federais (Ajufe), Conselho Federal da OAB, Associação Nacional dos Procuradores de República (ANPR), Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e do Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio da Secretaria Nacional de Justiça, com o apoio do Grupo Globo.

Desde sua criação, em 2004, o Prêmio Innovare já recebeu mais de 6.900 trabalhos e premiou, homenageou e destacou 213 iniciativas que têm como objetivo principal aprimorar o trabalho da Justiça em todo o país, tornando-a mais rápida, eficiente e acessível a toda a população. No site do Innovare (www.premioinnovare.com.br), é possível conhecer todas gratuitamente, utilizando a ferramenta de busca. A consulta pode ser feita por palavra-chave, edição, categoria, estado de origem e a situação da prática.

Jeferson Melo
Agência CNJ de Notícias