Joaquim Falcão*
A cena sempre se repete. Em qualquer lugar do mundo. Neste mês de maio, por exemplo, foi na reunião anual em Havard do David Rockefeller Center for Latin American Studies, da qual participaram importantes líderes empresariais e cientistas sociais da América Latina. Mais uma vez a Amazônia é um dos temas dominantes. No cenário estratégico global, a importância do Brasil não é geopolítica. Não somos potência nuclear ou base de terroristas. Muito menos nossos mercados financeiro e de consumo interno são significantes o suficiente para se destacarem no conjunto das economias desenvolvidas. Nem somos tradicional fonte de inovação tecnológica, exceção feita ao etanol. A importância estratégica do Brasil é a Amazônia. Ou melhor: o futuro da Amazônia. O que faremos com ela, isso sim, interessa ao mundo: às empresas, governos, cidadãos, ONGs e organizações internacionais multilaterais.
Daí, tudo o que o governo brasileiro faz em relação à Amazônia ter repercussão mundial. O governo Lula avançou enormemente nessa área. A parceria entre os ministros Nelson Jobim e Mangabeira Unger acresceu à política de preservação ambiental, tão a gosto dos estrangeiros, a política de defesa nacional, tão indispensável à nossa segurança territorial, e a política de desenvolvimento econômico, tão necessária aos 20 milhões de brasileiros que lá estão. De agora em diante, o interesse nacional exige uma política amazônica tripartite. O que não será de fácil aceitação pelos estrangeiros. Aliás, nessa reunião em Harvard, o enfoque ainda é 70% ambientalista e 30% de desenvolvimento social.
Essa nova política tem uma pedra de toque sem a qual nenhuma das três é viável: a regularização fundiária. É impossível fazer política ambiental, econômica e de defesa em território ilegal, de produção ilegal, com brasileiros ilegais. Os instrumentos clássicos do Estado Democrático de Direito aí não funcionam. Ou funcionam precariamente.
Daí a importância da Medida Provisória (MP) nº 458 de 2009, já votada e aprovada na Câmara, e que está agora no Senado. Sua importância vai além da regularização legal. Trata-se, na verdade, de grande projeto de distribuição de renda, isto é, distribuição de ativos públicos, sem impacto orçamentário. Engana-se quem acredita que só renda interessa ao trabalhador formal ou informal. Esse viés é o de economistas monetaristas. No Brasil de hoje, distribuir direitos é, também, distribuir renda.
Falta pouco para a aprovação dessa MP. Mas a regularização definitiva e pacificadora necessita de duas decisões fundamentais que dependem dos senadores. A primeira diz respeito à data limite da ocupação para o seu reconhecimento e regularização. No texto da MP, a data limite para constituição da ocupação é 1º de dezembro de 2004. Se o objetivo é incluir o maior número possível de ocupações nas ações de regularização, mais eficaz seria alterar a data para 1º de fevereiro de 2009, tal qual previsto no projeto original. Do contrário, cerca de 30 mil ocupações não serão contempladas. Continuarão na ilegalidade. Regularização incompleta.
A segunda decisão fundamental trata da possibilidade ou não de comercialização das terras regularizadas. O texto atual proíbe a comercialização das terras regularizadas pelo prazo de 10 anos. A experiência demonstra, porém, que a simples proibição da comercialização por meio de um texto normativo, quando não acompanhada de instrumentos efetivos de fiscalização e punição, abre espaço para o desenvolvimento de um mercado negro. As irregularidades fundiárias que hoje conhecemos tornam-se novamente a práxis social. Exatamente o que o governo busca combater por meio da MP.
Mais realista seria estabelecer que as terras regularizadas só pudessem ser vendidas para compradores que preenchessem as mesmas condições sociais de agricultura familiar dos vendedores. A proteção dos produtores familiares contra a temida concentração fundiária não está no prazo, mas na manutenção do mesmo caráter social dos proprietários. Não haverá Estado Democrático de Direito na Amazônia ou seja, em 45% do nosso território sem regularização fundiária.
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(*) Joaquim Falcão é diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (RJ) e membro do Conselho Nacional de Justiça
Publicado no Correio Braziliense no dia 21 de maio de 2009