Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico, em 12 de agosto de 2021
Valter Shuenquener de Araujo*, Marcus Livio Gomes** e Trícia Navarro Xavier Cabral***
Pode-se dizer que o incremento de ferramentas consensuais de resolução de disputas no nosso ordenamento jurídico teve como marco normativo a Resolução Conselho Nacional de Justiça (CNJ) n. 125/2010 [1], que instituiu a política judiciária nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário.
O referido ato normativo inovou ao mencionar a mediação e também ao consagrar a atipicidade das formas de solução de controvérsia. A ideia de adequação entre as particularidades do conflito e o método a ser utilizado trouxe uma nova perspectiva de racionalidade e proporcionalidade entre os meios e os fins.
Não obstante, a resolução conferiu ao Poder Judiciário a responsabilidade de aplicar e difundir a política, estipulando a necessidade de criação de uma estrutura própria e de instituir uma capacitação específica para os conciliadores e mediadores. Também foi exigido um acompanhamento estatístico específico para essas atividades.
A partir da referida normatização administrativa, o legislador federal foi inspirado a consagrar a ideia de Justiça multiportas no Brasil [2].
Com efeito, em 2015 três importantes leis foram aprovadas. O Código de Processo Civil (CPC), publicado em 16 de março, previu em diversos dispositivos o uso da conciliação, da mediação e da arbitragem, indicando que outros meios adequados de solução de controvérsias deveriam ser incentivados para se alcançar a justiça, além da decisão imposta pelo Estado-juiz. Registre-se que o CPC/15 encampou a política judiciária nacional de tratamento adequado de conflitos instituída pela Resolução CNJ n. 125/2010, especialmente no tocante à necessidade de criação de estrutura própria que atenda aos escopos legislativos com a qualidade. Com isso, exigiu a criação de Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs), a capacitação de mediadores e conciliadores, a regulamentação da remuneração, a criação de cadastro, entre outras providências (artigos de 165 a 175).
Por sua vez, em 26 de maio foi sancionada a Lei n. 13.129/2015, que altera a Lei da Arbitragem (Lei n. 9.307/96), regulamentando de forma mais completa a matéria e dando maior abrangência ao tema.
Logo na sequência, em 26 de junho, foi sancionada a Lei de Mediação (Lei n. 13.140/2015), completando, assim, o microssistema normativo dos meios adequados de tratamento de conflitos no Brasil.
A partir desse arcabouço normativo, a possibilidade de solução consensual das disputas — além de outras formas legítimas — passou a integrar variadas legislações, inclusive em matérias regidas pelo interesse público, como no caso das licitações e contratos administrativos, no âmbito tributário e no campo da improbidade administrativa. Até mesmo o ambiente penal foi afetado pelo princípio da consensualidade, de maneira que, atualmente, a possibilidade de acordo nessa seara já é uma realidade para delitos de pequeno (transação penal), médio (acordo de não persecução penal) e grande potencial ofensivo (colaboração premiada).
E, ao lado da possibilidade de acordos na esfera judicial, a resolução de conflitos no campo extrajudicial também foi fortalecida, sendo que o maior desafio atual é justamente proporcionar a integração desses dois espaços, em prol de vantagens mútuas.
Todos esses avanços legislativos foram reportados pela doutrina, que vem desempenhando relevante papel na consolidação de uma ordem jurídica que abarque a possibilidade de os cidadãos resolverem suas controvérsias na esfera pública e na esfera privada.
Nesse contexto, o STJ também vem incentivando, internamente, o fomento aos meios autocompositivos de resolução de disputas, chegando a modificar dispositivos do seu regimento interno para disciplinar o procedimento de mediação [3]. A Emenda Regimental n. 23, de 28 de setembro de 2016, incluiu e modificou dispositivos do regimento interno para disciplinar o procedimento de mediação no Superior Tribunal de Justiça, sendo que o artigo 288-A criou o Centro de Soluções Consensuais de Conflitos do Superior Tribunal de Justiça, responsável por realizar sessões e audiências de conciliação e mediação e por desenvolver programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição.
Seguindo a mesma tendência, o Supremo Tribunal Federal, por meio da Resolução n° 697/2020, instituiu o Centro de Mediação e Conciliação (CMC), responsável pela busca e implementação de soluções consensuais nos processos em andamento na corte. A tentativa de autocomposição será possível nas hipóteses regimentalmente previstas ou por indicação do relator, em qualquer fase processual.
O CNJ continua atuando em diversas frentes para ampliar o uso de métodos consensuais na resolução de conflitos administrativos e judiciais, inclusive por meio de recomendações que estimulam a criação de estruturas especializadas, como os Cejuscs para a área empresarial e para as demandas de saúde [4] [5].
E, mais recentemente, para coroar a política da consensualidade, o CNJ, durante a 335ª Sessão Ordinária, criou o Núcleo de Mediação e Conciliação (Numec), que atuará na solução consensual de conflitos internos do CNJ que envolvam servidores ou setores administrativos, bem como de processos administrativos em tramitação no CNJ de qualquer natureza e em qualquer fase de tramitação. Concluída a mediação ou conciliação com acordo, a homologação será feita pelo Plenário.
Portanto, espera-se que os esforços empreendidos pelo CNJ na mudança de cultura, na melhoria das relações pessoais e interinstitucionais e no ambiente de negócio no Brasil contribuam para um uso mais racional do Poder Judiciário e para a construção de uma sociedade mais pacífica e próspera.
[1] Acerca do princípio da consensualidade, ver: CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Limites da liberdade processual. Indaiatuba: Editora Foco, 2019.
[2] ZANETI JR., Hermes; CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Justiça Multiportas: mediação, conciliação, arbitragem e outros meios de solução adequada de conflitos (Coleção Grandes Temas do Novo CPC – vol. 9). 2. ed. Revista, ampliada e atualizada. Salvador: JusPodivm, 2018.
[3] Disponível em: https://www.stj.jus.br/publicacaoinstitucional/index.php/Regimento/article/view/3115/3839. Acesso em: 19 jan. 2021.
[4] Recomendação n. 71, de 5/8/2020. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3434. Acesso em: 10 ago. 2021.
[5] Recomendação n. 100, de 16/6/2021. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3988. Acesso em: 10 ago. 2021.
(*) Valter Shuenquener de Araujo é juiz federal da 2ª Região, professor associado de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), doutor em Direito Público pela UERJ, KZS pela Universidade de Heidelberg-Alemanha, secretário-geral do CNJ.
(**) Marcus Livio Gomes é juiz federal da 2ª Região, pesquisador associado do Instituto de Estudos Jurídicos Avançados (IALS / University of London), professor associado dos programas de Bacharelado, Mestrado e Doutorado em Direito Tributário e Direito Tributário Internacional na Uerj e secretário especial de Programas, Pesquisas e Gestão Estratégica do CNJ.
(***) Trícia Navarro Xavier Cabral é juíza de Direito no Tribunal de Justiça do Espírito Santo, pós-doutora em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP), doutora em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mestre em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e juíza auxiliar da Presidência do CNJ.