A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) está acompanhando o cumprimento da sentença imposta ao Brasil no caso Favela Nova Brasília. Durante a audiência pública realizada na sexta-feira (20/8) e conduzida pela presidente da Corte, juíza Elisabeth Odio Benito, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apresentou relatório referente aos cinco pontos resolutivos que ainda estão pendentes de cumprimento pelo Estado brasileiro.
A Corte IDH condenou o Estado brasileiro por violência policial no caso Cosme Rosa Genoveva e outros – Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil – em fevereiro de 2017. O caso se refere às chacinas ocorridas durante operações policiais na comunidade de Nova Brasília, no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, em 1994 e 1995. No total, foram mortas 26 pessoas. O Brasil reconheceu os fatos. Foram mortas 26 pessoas e três mulheres foram vítimas de violência sexual. O objetivo da audiência foi obter mais informações que permitam à Corte fazer a supervisão de cumprimento das sentenças, com a garantia de “não repetição” dos crimes cometidos pela força policial brasileira.
Em 2021, foi identificado que o Brasil ainda não implantou efetivamente essas garantias. Isso permitiu que fatos semelhantes ocorressem novamente. Em maio deste ano, foi registrada uma das operações policiais mais violentas da história no Rio de Janeiro, na Favela do Jacarezinho. A incursão resultou na morte de 28 pessoas (27 civis e um policial), o que trouxe repercussão nacional e internacional. Em razão disso, as partes pediram medidas provisórias à Corte IDH, diante da gravidade, urgência e risco de dano irreparável. A princípio, a Corte não concedeu as medidas, mas permanece acompanhando a situação.
Durante a audiência desta sexta-feira, o secretário-geral do CNJ, Valter Shuenquener, afirmou que a recorrência de eventos análogos ao caso da Favela Nova Brasília, como o ocorrido na comunidade do Jacarezinho, impõe ao Judiciário brasileiro delinear políticas que coíbam a prática de atos arbitrários por parte de agentes das forças de segurança pública e que contemplem medidas de combate ao racismo estrutural. “O CNJ busca enfrentar esse duplo desafio ao regulamentar as audiências de custódia com mecanismo para controle judicial de prisões com eventual violência na abordagem policial, bem como quando instituiu, em 2020, o grupo de trabalho de políticas judiciárias sobre igualdade racial”.
Sentença
Ao expor as ações da Unidade de Monitoramento e Fiscalização das Decisões da CIDH, o juiz auxiliar e coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) do CNJ, Luís Geraldo Lanfredi, informou que o Portal do CNJ irá publicar o Sumário Executivo sobre o caso Favela Nova Brasília em seu Portal. O objetivo, segundo ele, é contribuir para a difusão do conhecimento do caso e dos parâmetros e reparações fixadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A Corte IDH elencou, como objeto da audiência, as medidas de reparação ordenadas nos pontos resolutivos décimo quinto a vigésimo da Sentença de 16 de fevereiro de 2017. O documento também deve trazer informação atualizada anualmente sobre as investigações realizadas a respeito de cada incidente. Segundo análise do CNJ, a reparação deve ser feita pelo estado do Rio de Janeiro e pela União. Contudo, apesar de o governo estadual divulgar informações sobre letalidade policial, não há dados estatísticos claros sobre andamento e conclusão das investigações.
A União também não está cumprindo sua parte. Apesar de ter sido instituído o Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais e sobre Drogas (SINESP), que é gerido pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, foi criado um painel nacional sobre segurança pública, mas a base de dados disponível não apresenta dados nacionais sobre violência policial, e os índices de homicídios não discriminam o número de policiais e civis mortos durante as operações.
Para tanto, o CNJ sugeriu que o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, o Ministério Público do Rio de Janeiro e o Ministério Público Federal produzam relatório anual estatístico sobre as investigações realizadas; e recomendou que os dados estaduais sobre os índices de letalidade policial sejam expostos de forma pormenorizada no painel do SINESP, de forma a garantir a transparência e a capacidade de se pensar políticas públicas nacionais e locais focadas na superação do ciclo de violações reportado.
De acordo com Luís Lanfredi, tais medidas vão garantir mais transparência e induzir o desenho de políticas públicas nacionais e locais para se superar o ciclo de violência e violações reportados. “Tal ação deve ocorrer em conformidade com informações obtidas a partir de reuniões prévias com a sociedade civil, para que os dados sejam aptos a refletir a realidade”. O magistrado afirmou que o CNJ velará para que os indicadores levem em conta não apenas o número de inquéritos relatados pelas polícias judiciárias e as denúncias oferecidas pelo Ministério Público, mas também apontem o número de inquéritos arquivados, pois esse indicador se conecta com a superação dos autos de resistência.
Investigação independente
Em relação ao ponto que determina a investigação imparcial e independente – na hipótese de supostas mortes, tortura ou violência sexual decorrentes de intervenção policial, em que os policiais apareçam como possíveis acusados – o CNJ apontou que, sob a perspectiva regulamentar, o Conselho já adotou a Recomendação n. 49/2014, que “dispõe sobre a necessidade de observância, pelos magistrados brasileiros, das normas – princípios e regras – do chamado Protocolo de Istambul, da Organização das Nações Unidas (ONU), e, bem assim, do Protocolo Brasileiro de Perícia Forense, em casos de crime de tortura e dá outras providências”. Além da publicação da Resolução CNJ n. 213/2015, que instituiu as audiências de custódia como mecanismo para controle judicial de eventual violência na abordagem policial.
Em relação ao dever de investigar propriamente dito, no entanto, o CNJ ressaltou que o Poder Judiciário não tem atribuição para diligenciar sobre a ocorrência de fatos que potencialmente possam constituir crimes, segundo a Constituição Federal. Nesse sentido, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) tem condições de informar sobre as providências adotadas, no âmbito de suas atribuições.
Outro item da sentença exige que o governo do Rio de Janeiro adote medidas necessárias para estabelecer metas e políticas de redução da letalidade e da violência policial, como uma garantia de não repetição. No entanto, segundo o levantamento realizado pelo instituto GENI, da Universidade Federal Fluminense, desde os anos noventa, a polícia do Estado do Rio de Janeiro foi direta ou indiretamente envolvida em diversos eventos que indicam a persistência de um padrão estrutural de elevada letalidade policial.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF) deferiu parcialmente pedido de medida cautelar na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635/2019. Entre os pedidos estruturantes para a ação policial, como a formulação de plano de redução da letalidade policial e de controle de violações de direitos humanos por agentes de segurança; a vedação ao uso de helicópteros como plataformas de tiro ou instrumentos de terror; a utilização de ambulâncias e equipes de saúde em operações policiais; e afirmação do caráter excepcionalíssimo da realização dessas operações em áreas próximas a escolas e creches, entre outros.
A partir desse diálogo, inclusive, surgiu a proposta de, no âmbito da ADPF 635, criar um observatório judicial sobre polícia cidadã, que deve ser formado por representantes do STF, pesquisadores e pesquisadoras, representantes das polícias e de entidades da sociedade civil. “Dessa forma, verifica-se que a partir das medidas adotadas no âmbito da ADPF 635, o Poder Judiciário Brasileiro tem buscado criar mecanismos e superar práticas que perpetuam a violência policial. Essas medidas têm sido construídas a partir e em diálogo com os parâmetros interamericanos”, diz o relatório.
Capacitação
A sentença prevê que o Brasil implemente um programa ou curso permanente e obrigatório sobre atendimento a mulheres vítimas de estupro. Sobre esse ponto, o coordenador do DMF informou que o Conselho Nacional de Justiça sugeriu que as academias de Polícia Civil, Militar e Federal, assim como o Conselho Nacional de Saúde, incorporem os parâmetros internacionais e interamericano de atendimento à vítima de violência sexual e investigação do crime em cursos de formação sobre os quais são responsáveis.
Quanto à obrigação de o Estado permitir às vítimas ou seus familiares participar de maneira formal e efetiva da investigação conduzida pela polícia ou pelo Ministério Público, Lanfredi informou que o CNJ emitiu a Resolução n. 253/2018 e a Resolução n. 386/2021, adotando a orientação técnica que explicita os direitos da vítima de participar de todas as etapas da apuração de responsabilidade dos autores de crimes relacionados a direitos humanos, incluídas a etapa investigatória e a fase de conhecimento.
A aplicabilidade das Resoluções CNJ n. 253/2018 e n. 386/2021 é um dos encaminhamentos feitos pelo Conselho. De acordo com o relatório, a ideia é dar uma “orientação técnica” que explicite os direitos da vítima em participar de todas as etapas da apuração de responsabilidade dos autores de crimes que constituam violações à direitos humanos (o que inclui a etapa investigatória e a fase de conhecimento).
Também propôs encaminhar recomendação de parecer favorável ao Poder Legislativo à proposta do art. 11 do PL 8045/2010, referente à reforma do atual Código de Processo Penal Brasileiro, que confirma os direitos constitucionais e convencionais das vítimas, em conformidade com os parâmetros interamericanos. “Vamos promover uma publicação que busque resgatar as experiências de vítimas habilitadas como assistente de acusação em casos de graves violações a direitos humanos que tramitaram no sistema interamericano. A documentação e registro das experiências vividas pode ser útil para fomentar as duas primeiras iniciativas propostas”, declarou Lanfredi.
Por fim, o governo brasileiro também deve adotar as medidas necessárias para uniformizar a expressão “lesão corporal ou homicídio decorrente de intervenção policial” nos relatórios e investigações da polícia ou do Ministério Público em casos de mortes ou lesões provocadas por ação policial. A sentença determina que o conceito de “oposição” ou “resistência” à ação policial deve ser abolido.
Segundo o CNJ, o “auto de resistência” é uma expressão cultural institucionalizada na polícia desde os anos de 1970. O problema é se substituição da expressão vai modificar também “o olhar e da conduta dos operadores do Sistema de Justiça frente aos mesmos fatos (mortes de civis causadas por confronto entre civis e policiais)”, ressalta o relatório.
Jeferson Melo e Lenir Camimura Herculano
Agência CNJ de Notícias