José Barroso Filho*
De início, convido a compartilharmos a inquietação e indignação com o diálogo abaixo transcrito. Em um município pobre da nossa região amazônica, quando acompanhava, como observador, a operação Timbó III – exercício combinado entre a Marinha, Exército e a Aeronáutica – tive a oportunidade de conversar com uma garota de 16 anos de idade.
Primeiro perguntei sobre os estudos. Ela respondeu: Não ia muito bem, apesar de estar na 2ª série do 2º grau, ela não sabia escrever direito… Perguntei sobre o trabalho: Ela disse que na região não havia trabalho… no início da tarde, quase todos os jovens ficavam olhando o horizonte. “um olhar perdido”.
Perguntei sobre namoro – na tentativa de aliviar o clima. Ela falou que os meninos de 12, 13 anos já se envolviam com drogas ou bebida e não era essa a vida que ela queria… Por fim, perguntei: O que você espera da vida? Tristonha, respondeu: NADA!
Inquietos e indignados, pensemos em soluções conjuntas e sistêmicas para a realidade que se apresenta muito além dos autos de um processo judicial. Mais importante do que resolver a lide que se apresenta no processo, o desafio do pacificador jurídico é perceber e solucionar a real gênese do conflito.
Por vezes, se confundem, por vezes, a lide processual é apenas a ponta de um imenso iceberg. Se resolvermos a causa primeira, resolveremos não só aquela lide processual, mas evitaremos outras tantas (decorrentes da real causa do litígio).
Imagine a frustração de um Juiz que sabe que sua sentença não tem condições sistêmicas de exeqüibilidade… Saber que a sua sentença não resgatará aquele menino das ruas… Saber que aquele eventual infrator dificilmente será reinserido na sociedade… Saber que as condições sócio-político-econômicas continuarão a estimular os conflitos…
Desde os meus primeiros dias na Faculdade de Direito, eu pude constatar um grande princípio: O Direito, por si só, não dará jeito no mundo!!!Ou seja, precisamos de um envolvimento multidisciplinar para dar um mínimo de encaminhamento prático, termos uma sentença socialmente justa, politicamente adequada e socialmente exeqüível…
Exerço a magistratura na região Amazônica e conhecendo as peculiaridades deste “continente”, ouso lançar algumas reflexões e sugestões que visam contribuir, de forma sistêmica, para o desenvolvimento da Amazônia e do Brasil.A premissa básica pois o ser humano é a origem e fim de todo o ordenamento jurídico. Assim caminhemos:
De Tiros-de-Guerra a Centros Integrados de Cidadania
Abordemos o tema Saúde e Inclusão digital. A origem dos tiros-de-guerra (TG) remonta ao ano de 1902, quando se fundou em Rio Grande (RS) uma sociedade de tiro ao alvo com finalidades militares – esta, a partir de 1916, no impulso da pregação de Olavo Bilac em prol do serviço militar obrigatório, transformou-se, com o apoio do poder municipal, nesse tipo de organização militar tão essencial à formação de reservistas brasileiros. O objetivo dos TG é formar reservistas de 2ª categoria aptos ao desempenho de tarefas no contexto da Defesa Territorial e Defesa Civil.
A formação do atirador é realizada no período de 40 semanas, com uma carga-horária semanal de 12 horas, totalizando 480 horas de instrução. Há um acréscimo de 36 horas destinadas às instruções específicas do Curso de Formação de Cabos – um terço desse tempo é direcionado para matérias relacionadas com ações de saúde, ação comunitária, defesa civil e meio ambiente. O TG é um bom exemplo de como é possível conciliar a prestação do serviço militar obrigatório com as atividades civis dos jovens convocados. Os TG participam de ações comunitárias, como projetos com crianças e adolescentes em situações de risco social, campanhas de vacinação e de prevenção de enfermidades, recuperação e conservação de escolas públicas, entre outras. A idéia é que, em cada município, seja instalado um Tiro-de-guerra, de modo a que, nessa ação conjunta entre o EB e o respectivo município, a juventude possa receber noções básicas de civismo de modo a habilitá-lo a ser um cidadão prestante.
Vale ressaltar, em cada TG da região amazônica – em regiões carentes, existe um médico e um dentista, ambos prestando serviço militar obrigatório, estes militares atenderão os participantes do TG, mas também poderão atender as comunidades da região. Infelizmente, o número de TG na Amazônia é reduzido, apesar das vantagens evidentes, mormente, no tocante à área de saúde, pois os médicos e dentistas não se fixam nos municípios do interior e com o TG sempre haverá uma assistência médica para a população.
Pois bem, cabe ao Município fornecer e manter o local onde será instalado o TG, porém, nossos municípios, em sua grande maioria, não tem condições de fazê-lo. Como solução, eu proponho a confecção de convênios de cooperação entre o Estado, os Municípios e o Comando Militar da Amazônia para que o Estado possa assumir as despesas da parte física do TG / Centro Integrado de Cidadania, pois todo o restante, material e pessoal será de responsabilidade do Exército Brasileiro.
Posso garantir, tal convênio sairá muito mais barato do que tentar manter médicos e dentistas, a altíssimos salários, a uma porque o Poder Público não pode pagar e a duas porque estes profissionais não ficam todo tempo à disposição da população, não raro abandonam “a dura vida na selva” após dois ou três meses. Nestes TG / Centros Integrados de Cidadania poderiam ser instalados infocentros visando promover a inclusão digital. Os Infocentros são centros públicos de acesso à informática, ou seja, locais de livre acesso onde a população pode utilizar os computadores para fazer trabalhos, conhecer diversos softwares, navegar e pesquisar na internet.
Tudo com a utilização do Sistema GESAC. O objetivo é possibilitar ao cidadão, especialmente o de baixa renda, o livre acesso às tecnologias de informação e comunicação. Nesse sistema, máquinas simplificadas – sem disco rígido, disquete ou CD Rom, chamadas estações “diskless” – conectadas em rede, realizam o computador, ou seja, inicializam os programas e carregam os aplicativos através do HD de outra máquina mais potente, chamado Servidor. Como os serviços de administração, suporte e instalação de aplicativos se encontram centralizados no servidor e são compartilhados imediatamente por todas as máquinas, o sistema de terminais reduz custos na área de Tecnologia da Informação. Pela centralização dos dados, o processo de backup é simplificado. Tudo isso reduz consideravelmente os gastos com a manutenção.
Esta estrutura permitirá o desenvolvimento de um projeto de Ensino à Distância para as comunidades ribeirinhas, na seqüência:
Acesso à Educação
Continuemos nos Centros Integrados de Cidadania:
A educação é o ponto de partida para mudar este quadro de desesperança.
Segundo ROUSSEAU “a educação não somente muda as pessoas, mas também a toda a sociedade, pois se trata de educar o cidadão para que ele ajude a forjar uma nova sociedade”. Nos rincões da nossa Amazônia, nas localidades mais afastadas, por vezes, sequer existe escola ou professores. Surge, pois a necessidade de utilizarmos novas tecnologias para que a educação cumpra a sua missão emancipatória, no sentir de PAULO FREIRE.
O Ensino à Distância (EAD) pode ser uma grande opção para cheguemos às populações ribeirinhas mais longínquas. A tanto, trago como sugestão, o sistema EAD do Colégio Militar de Manaus (CMM), dada a sua excelência, praticidade e baixo custo. O projeto de Ensino a Distância (EAD) do Colégio Militar de Manaus (CMM) tem por objetivo oferecer uma educação de qualidade a jovens de todo o país e também aos filhos e dependentes de militares que sofrem as consequências educacionais advindas de constantes movimentações. Atualmente, além da Amazônia, o projeto já conta com alunos em 16 países, v.g., Peru, Bolívia, Venezuela, México, Estados Unidos e Inglaterra. Estando em plena conformidade com toda a legislação educacional vigente no país.
O apoio local ao aluno é prestado por um orientador, uma pessoa devidamente escolhida na comunidade. Os materiais didáticos e informações administrativas são enviadas ao orientador que, por sua vez, repassa o material para os alunos. O CMM presta todo o apoio didático e pedagógico ao aluno através de sua equipe de professores-tutores. A verificação do processo de ensino-aprendizagem ocorre por meio de avaliações presenciais e trabalhos individuais que, após realizados, são remetidos para o CMM onde são corrigidos e devolvidos aos alunos para os ajustes que se façam necessários.
Pois bem, este sistema deve ser ampliado no intuito de atender também aos civis – os filhos daquela comunidade que vive nas cercanias das unidades militares e dos infocentros. Para tanto, é necessário que se firme um convênio com o Governo Estadual e/ou Ministério da Educação no intuito de disponibilizar professores-tutores para atuar nos centro de emissão, de acordo com o número de alunos atendidos, bem como, o fornecimento de meios materiais para a execução do projeto. A questão logística não é de difícil superação.
O Sistema de Proteção da Amazônia – SIPAM poderá disponibilizar o uso de sua moderna rede de comunicação através de pontos de acesso tecnológicos e de infocentros a serem disponibilizados em várias localidades da Amazônia, para que os alunos do EAD possam entrar em contato com o CMM, via internet. A proposta é ampliar o campo de abrangência do projeto para atender as populações civis que vivem próximas às unidades militares e aos infocentros. Os recursos podem ser obtidos com o FAT e o FUST, bem como por meio de projeto junto ao Programa de Desenvolvimento da Nações Unidas (PNUD).
Tal como PESTALOZZI mantenho a “crença na educação como meio supremo para o aperfeiçoamento individual e social”. Não quero mais presenciar diálogos como o acima descrito, para tanto, a sociedade precisa se unir para construirmos uma nova realidade, uma nova perspectiva. Para FREINET, pela educação será possível construir um novo amanhã.
Acesso à Justiça
Nos Centros Integrados de Cidadania poderá ser instalado um posto de atendimento remoto da Justiça. Relembrando que, em cada Pelotão Especial de Fronteira, em cada Tiro-de-Guerra, em cada Unidade Militar da Amazônia poderá ser instalado um Centro de Desenvolvimento Social (CDS), situação que demonstra a grande capilaridade e abrangência da proposta.
Pois bem, em cada Centro Integrado de Cidadania, um graduado poderá ser destacado para a orientação e recepção de documentos e da petição inicial para futuramente os interessados comparecerem à audiência perante um Juiz. Este atendimento seguiria a idéia de “Justiça Itinerante” porém com maior extensão.
As Forças Armadas poderiam colaborar no transporte da equipe judiciária (juiz e servidores) para a realização destas audiências.
Por certo, com a provável concessão de benefícios previdenciários – através da atuação da Justiça Federal – a renda média da localidade iria aumentar significativamente, o que seria um claro fator de desenvolvimento regional.
O Projeto de Inclusão Digital compartilharia equipamentos com os Pontos de Justiça, o que aglutinaria mais parceiros a este projeto sistêmico. Há grupos de empresários dispostos a fazer doações para projetos de inclusão digital. A Microsoft mantém um projeto de disponibilização gratuita dos seus sistemas operacionais a estes Centros de Inclusão Digital.
Para viabilizarmos estes Pontos de Justiça basta que se faça um Convênio de Cooperação entre os seguintes órgãos:
– Conselho Nacional de Justiça
– Conselho da Justiça Federal
– Ministério da Justiça
– Ministério das Comunicações
– Ministério da Saúde
– Ministério da Defesa
Não faltam equipamentos, nem dinheiro, muito menos, boa vontade e projetos sérios para ajudar nesta mudança de realidade. Caminhemos juntos para que tornar realidade estes Centros de Cidadania de forma que os nossos irmãos amazônidas possam ter direito a saúde, educação, inclusão digital e acesso à justiça.
(*) Juiz Auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça – CNJ (DF); Juiz-Auditor da Justiça Militar Federal, titular da 12ª C.J.M. (AM, AC, RO e RR), já atuou na 2ª Auditoria da 3ª C.J.M. (Bagé/RS), na 3ª Auditoria da 3ª C.J.M. (Santa Maria/RS), na Auditoria da 6ª C.J.M.(Ba e SE) e na Auditoria da 10ª C.J.M. (CE e PI); Selecionado pela ONU para o posto de Juiz Internacional em Timor-Leste; Professor universitário; Doutorando em Administração Pública pela Universidad Complutense de Madrid (Espanha); Diploma de Estudos Avançados em Administração Pública (Universidad Complutense de Madrid – Espanha); Mestre em Direito pela UFBA; Especialista em Direito Público pela UNIFACS; Pós-graduado pela Escola Judicial Edésio Fernandes/MG, pela Escola de Formação de Magistrados/Ba e pela Escola Superior de Guerra/RJ; Professor da Escola de Magistrados/Bahia; Professor de Cursos de pós-graduação do CIESA (AM), Fundação Visconde de Cairu (BA) e CCJB (Ba); Conferencista da Escola de Administração do Exército (ESAEX); Diretor científico do Centro de Cultura Jurídica da Bahia (CCJB); Membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Direito Público; Membro de Bancas Examinadoras em Concursos Jurídicos; Autor de várias obras jurídicas (livros e artigos); Ex-Juiz de Direito (MG); Ex-Juiz de Direito (PE); Ex-Juiz Eleitoral (45ª e 123ª Zonas Eleitorais – TRE/PE); Ex- Promotor de Justiça (BA).
Artigo publicado em 6 de junho de 2008.