Não havia lugar mais emblemático para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) iniciar seu primeiro mutirão carcerário que o Complexo de Gericinó, no bairro de Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Era agosto de 2008 e o projeto piloto de execuções penais pretendia revisar, em conjunto com a Vara de Execuções Penais (VEP) do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), a situação legal dos internos de uma das unidades prisionais do famoso Complexo de Bangu. O trabalho é um marco do compromisso do CNJ de envolver o Poder Judiciário de maneira definitiva no enfrentamento da crise prisional no país.
As equipes dos mutirões reanalisaram os processos de centenas de milhares de presos e libertaram dezenas de milhares de pessoas que se encontravam presas ilegalmente. Em 2020, o mutirão carcerário torna-se cada vez mais eletrônico. Com a implantação em escala nacional do Sistema de Execução Eletrônica Unificado (SEEU), o penoso trabalho enfrentado pelas equipes dos mutirões de triar processos de papel guardados em pastas empilhadas em arquivos desorganizados tende a desaparecer.
A libertação de 5.365 presos ilegalmente no primeiro ano dos mutirões carcerários do CNJ materializou mais do que a realização da Justiça, missão original do Conselho. A interrupção sistemática de prisões irregulares – muitas delas por ultrapassar o prazo sentenciado – impôs um contraponto institucional tanto à cultura do encarceramento, enraizada na sociedade e no sistema de Justiça, quanto à postura dos juízes em relação à crise do sistema prisional, até então atribuída, sobretudo, ao Poder Executivo.
Em 2008, boa parte dos 209 mil presos provisórios (45% do total) permanecia em presídios sem condenação, à espera do julgamento, devido à elevada quantidade de prisões provisórias decretadas à época. O Departamento Penitenciário Nacional (Depen), vinculado ao Ministério da Justiça, era a fonte exclusiva de informação estatística sobre o sistema carcerário nacional.
“Cinco mil presos, isso equivale a pelo menos 20 presídios de porte médio. É algo significativo o que foi feito neste ano (nos mutirões) e, sobretudo, aquilo que tem se evitado que se faça. É necessário que os juízes se tornem mais críticos em relação ao decreto de prisão provisória, que os juízes acompanhem a situação dos presos nos presídios”, afirmou o então presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, responsável por lançar o programa, em agosto de 2008.
Fiscalização do sistema carcerário
Em 2009, surgiu o braço executivo do CNJ para tratar, do ponto de vista legal, dos assuntos relacionados ao sistema carcerário: o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), criado por lei federal 12.106/09.
Na justificativa do anteprojeto de lei que criaria o DMF, os impasses contidos na problemática das prisões estavam postos. “É preciso dizer que esse modelo é inadequado e exige mudanças urgentes. Na essência, nos mutirões carcerários estão em discussão a impunidade, a segurança pública e o respeito aos direitos humanos”, trazia o texto.
Se, em junho de 2009, a situação do sistema carcerário demandava providências urgentes, a crise prisional se agravou de lá para cá. Em 10 anos, a lotação das prisões aumentou 60% e a falta de vagas nas unidades prisionais cresceu exatamente na mesma proporção – hoje faltam 313 mil vagas. Quando o DMF foi criado, a população carcerária se aproximava da marca de 470 mil presos, pelas estatísticas do Depen. Hoje, o Brasil tem 755 mil presos e é o terceiro país com mais presidiários no mundo, de acordo com o Instituto de Políticas Criminais e de Justiça da universidade britânica de Birkbeck.
Déficit de informações
A falta de informações desafia, desde antes da criação do DMF, a gestão da execução penal de condenados à privação de liberdade. Registros de listagens de presos imprecisas ou inexistentes – muitas delas feitas manualmente – se acumulam nos relatórios estaduais dos mutirões carcerários. O descontrole sobre a população carcerária torna-se especialmente problemático quando as cadeias se rebelam.
Nos primeiros 15 dias de 2017, massacres em prisões de seis estados – entre eles, o Amazonas – terminaram com 122 assassinatos de presos. Enquanto DVDs com vídeos da chacina eram vendidos nas ruas de Manaus, as autoridades não sabiam sequer quantos presos havia na capital. Segundo o Executivo local, eram 1.600, enquanto o TJAM informou haver 5.949 processos referentes a presos na sua Vara de Execuções Penais.
O grupo de trabalho emergencial criado à época para lidar com a crise dos presídios do Norte do país concluiu que os massacres em Manaus “desnudaram a absoluta deficiência dos dados disponíveis do Poder Executivo e do Poder Judiciário, do que decorre a ausência de informações para a correta compreensão e planificação das ações corretivas e preventivas”.
Uma das autoras do relatório, a coordenadora do DMF entre 2016 e 2018 e juíza do Tribunal de Justiça do Pará (TJPA), Maria de Fátima Alves, recorda a estratégia adotada para superar os problemas causados pela falta de dados processuais confiáveis sobre a população carcerária. “Na gestão da ministra Carmem Lúcia, o CNJ focou em criar um cadastro nacional de presos que pudesse não só agilizar a atividade do juiz, mas também permitir um planejamento de ações para sanear os problemas que o sistema carcerário tinha – e ainda tem”, afirmou a magistrada.
O Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP 2.0) ampliou e atualizou um cadastro que o CNJ mantinha para localizar mandados de prisão e procurados da Justiça, o Banco Nacional de Mandados de Prisão, lançado em 2011. Além dos mandados de prisão, o BNMP 2.0 incluiu as informações pessoais dos presos – nome, filiação, alcunhas, entre outros – assim como a movimentação do seu processo, como mandados de prisão, alvarás de soltura, mandados de internação e guias de recolhimento e de internação.
O trabalho realizado para criar o cadastro nacional de presos se uniu a outro, iniciado na gestão anterior, do ministro Ricardo Lewandowski: a criação do SEEU, por meio da Resolução CNJ n. 223. O sistema virtual permite ao juiz acompanhar a execução das penas de cada preso sob sua responsabilidade na tela do computador ou celular. Sem ter de realizar cálculos manualmente, como era feito até alguns anos atrás, o magistrado usa a plataforma para realizar esse e outros procedimentos legais e administrativos.
O SEEU calcula automaticamente que dia o preso terá direito a progredir de regime (do fechado para o semiaberto, por exemplo), a data em que a lei garante ao condenado direito a saídas provisórias, o número de dias que serão deduzidos da pena em função de trabalho ou estudo realizado durante o cumprimento da pena. Esse acompanhamento da execução penal está disponível não apenas para o magistrado, mas também para promotores de justiça, defensores públicos, administração prisional. Basta ser cadastrado no sistema e acessá-lo por computador ou telefone celular.
Com a equipe do programa Justiça Presente, o sistema tem se expandido desde 2019 e já possui em seu banco de dados 1,4 milhão de processos de execução penal. O programa foi implantado na gestão atual, do ministro Dias Toffoli, o programa conta com a participação do Programa Nacional das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e está dividido em quatro eixos de atuação: sistemas eletrônicos; propostas e alternativas ao superencarceramento; políticas de cidadanias; e sistema socioeducativo. Cada eixo se desdobra em diversas ações e produtos, desenvolvidos com o apoio de coordenadores e assessores especializados alocados nas 27 unidades da federação.
Esse apoio tem sido fundamental para a alimentação do SEEU pelos tribunais, tarefa que passou a ser obrigatória com a edição da Resolução CNJ n. 280. Em maio de 2020, a ferramenta já era adotada por 31 dos 32 tribunais que poderiam utilizá-lo, por ser a execução penal da competência dos 27 da Justiça Estadual e dos 5 da Justiça Federal.
“Trata-se de um projeto grandioso, inédito pela parceria internacional, abrangente pelo escopo, e que corrobora a maturidade do DMF. É o projeto que, pela primeira vez, dá consistência ao DMF e o coloca como órgão de efetivo monitoramento e fiscalização do sistema prisional brasileiro”, afirmou o coordenador do DMF desde 2018, Luís Geraldo Lanfredi.
Perspectiva histórica
Para o juiz do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) Márcio Keppler Fraga, que atuou no DMF entre 2010 e 2012, um banco de dados processuais de abrangência nacional do Poder Judiciário era apenas um “sonho” 10 anos atrás. “A gente que viu a situação de 10 anos antes e vê hoje essa informação qualificada, que é tão importante para a prestação jurisdicional, percebe que o Poder Judiciário fez o seu dever de casa. Por mais que a realidade carcerária atual ainda tem muito a melhorar, é importante que a sociedade saiba que há um crescimento, uma melhoria”, disse. Fraga coordenou o desenvolvimento e a implantação do Geopresídios, ferramenta pública que apresenta os resultados resumidos das inspeções ao sistema carcerário, feitas mensalmente por magistrados de todo o país.
A ferramenta traduzia para uma interface gráfica amigável as informações do Cadastro Nacional de Inspeções nos Estabelecimentos Penais (CNIEP). As inspeções seguem as especificações previstas na Resolução CNJ n. 47, de 2007. Ao navegar um mapa do Brasil, o internauta pode localizar todas as unidades prisionais conhecidas da Justiça.
Com dados próprios sobre a população carcerária brasileira, o Poder Judiciário passou a ter mais propriedade no debate sobre a crise prisional. O Geopresídios, por exemplo, permitiu ao CNJ publicar o Novo Diagnóstico de Pessoas Presas no Brasil. O estudo revelou um quadro do problema carcerário mais fiel à realidade ao acrescentar o total de pessoas em prisão domiciliar, um regime de prisão que não era contabilizado nas estatísticas do Depen.
Segundo o juiz Luiz Carlos Rezende e Santos, que participou do projeto enquanto atuava no DMF, entre 2013 e 2014, ignorar esse contingente populacional em prisão domiciliar prejudicava a compreensão do fenômeno do superencarceramento. “Havia um problema para se calcular o percentual de presos provisórios no Brasil porque havia – e até hoje há – uma grande quantidade de presos condenados que está em prisão domiciliar, uma ficção jurídica criada pelos juízes de execução penal para resolver o problema do sistema prisional brasileiro. Essa prisão domiciliar não era computada para efeito de calcular as condenadas com as provisórias”, afirmou. Autorizar o condenado a deixar o presídio para cumprir o resto da pena em casa era muitas vezes a única solução à mão do juiz para contornar uma situação de absoluta falta de vagas em determinada unidade prisional. Se os 147,9 mil condenados em prisão domiciliar à época fossem obrigados a voltar à unidade prisional onde cumpriam pena anteriormente, a superlotação do sistema carcerário cresceria 26%.
Outra consequência de recalcular o peso dos provisórios na infraestrutura carcerária a partir de um novo total de presos foi a queda do percentual de provisórios, de 41% para 32%. O novo dado relativizou o argumento dos críticos da Justiça que atribuíam os presídios abarrotados, principalmente, à demora dos magistrados para julgar os presos provisórios. “Foi um estudo muito importante para descobrir a população carcerária, debater as prisões domiciliares que existem no Brasil e fazer política pública. A partir daí, vieram situações novas, como os novos regramentos do monitoramento eletrônico com tornozeleiras”, disse o magistrado.
Controle da custódia
Desde 2014, os juízes passaram a usar com mais frequência a tornozeleira eletrônica como alternativa à prisão de réus que respondiam em liberdade, embora o monitoramento eletrônico já fosse autorizado por lei desde 2011, com a edição da chamada Lei das Cautelares (12.403/11). De acordo com o Diagnóstico sobre a Política de Monitoração Eletrônica, levantamento feito por Depen e PNUD junto a administrações prisionais de 24 Unidades Federativas, o número de pessoas sob monitoração eletrônica em todo o Brasil saltou de 14,2 mil em 2015 para 55,5 mil, dois anos depois.
O CNJ participou da elaboração e implantação de duas políticas públicas que estimularam o uso crescente das tornozeleiras. Em 2015, o CNJ firmou acordo com o Ministério da Justiça para apoiar estados na compra de equipamentos e na implantação das centrais de monitoração eletrônica. No mesmo ano, a expansão nacional das audiências de custódia, implantadas pelo CNJ e pelos tribunais da Justiça estadual e federal, também contribuiu para a mudança na cultura do encarceramento automático à medida que os juízes passaram a recorrer às tornozeleiras para aplicar medidas protetivas de urgência, contra agressores em casos de violência cometida a mulheres, por exemplo.
As audiências de custódia consistem na rápida apresentação do preso a um juiz nos casos de prisões em flagrante. No ato, o juiz analisa a legalidade, a necessidade e a adequação da continuidade da prisão ou da eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares. O magistrado avalia, ainda, eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades. Hoje, a realização dessas audiências ocorre conforme o previsto na Resolução CNJ n. 213/2015. O fortalecimento do instituto conforme parâmetros internacionais também é uma das principais ações do Justiça Presente.
Segundo a pesquisa de Depen e PNUD, em 2017, aproximadamente 17% das pessoas monitoradas cumpriam alguma medida alternativa à prisão e apenas 2,83% eram monitoradas devido a uma medida protetiva de urgência, conforme prescrito na Lei Maria da Penha. O CNJ abriu um edital em 2019 para contratar com recursos do Programa Justiça Presente uma instituição de pesquisa para investigar o uso das tornozeleiras no país.
Audiências de Custódia
Depois de seis anos, o modelo do programa foi revisto e o CNJ decidiu investir não apenas nos mecanismos de saída do sistema prisional, mas no momento da entrada. Em fevereiro de 2015, sob a presidência do ministro Ricardo Lewandowski, o Conselho instituiu um projeto piloto em parceria com o TJSP para apresentar todo preso em até 24 horas a uma autoridade judiciária. Na chamada “audiência de custódia”, termo que batizou o programa, o juiz analisava a necessidade, a legalidade e a adequação da prisão da pessoa apresentada pela polícia. Na audiência, o magistrado ouvia as manifestações do Ministério Público, da Defensoria Pública ou do advogado da pessoa detida para poder decidir se mantinha ou relaxava a prisão ou ainda se concedia o direito de aguardar julgamento em liberdade, com alguma medida cautelar (tornozeleira eletrônica, por exemplo).
De projeto-piloto, as audiências de custódia foram consolidadas com a edição da Resolução CNJ n 213, no fim de 2015. Contribuiu para a consolidação da experiência como política pública a chancela do Supremo Tribunal Federal. Em setembro de 2015, na mesma decisão em que reconheceu o “estado de coisas inconstitucional” das prisões, o STF deu 90 dias para que os tribunais e juízes começassem a realizar as audiências de custódia nos estados.
Em pouco mais de cinco anos de programa, as audiências evitaram que as 291 mil liberdades concedidas nas audiências de custódia agravassem o quadro de superencarceramento no país, sem abandonar o rigor na análise das prisões. Em cinco anos de programa, os juízes das audiências de custódia mantiveram a prisão preventiva de 60% dos presos apresentados – nos demais 40% dos casos, os presos foram autorizados a responder em liberdade.
Além de combater a cultura do encarceramento, a iniciativa do CNJ e dos tribunais alinhou o Brasil a parâmetros internacionais de respeito aos direitos humanos. Alguns deles, como a Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica, estão inscritos em tratados que o Brasil assinou. Desde 1992, quando foram incorporados à legislação nacional, têm força de lei. No entanto, nunca haviam sido postos em prática antes de o CNJ propor o novo procedimento pós-prisão.
“É interessante destacar a aplicação direta de tratados internacionais e como isso ressignificou e valorizou o conceito de racionalização da “porta de entrada” do sistema prisional. Tanto é verdade que a iniciativa teve significativo impacto no crescimento da população prisional. A série histórica de crescimento desse contingente também foi impactado depois da implantação das audiências de custódia”, afirmou juiz auxiliar da Presidência Luís Geraldo Lanfredi. O magistrado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) coordenou o DMF de 2014 a 2016, na gestão Lewandowski, e retornou à coordenação do departamento em 2018, para a implantação do Justiça Presente, sob a presidência do ministro Dias Toffoli.
Economia prisional
Embora as 291 mil liberdades concedidas desde 2015 nas audiências de custódia não tenham automaticamente evitado o acréscimo de 291 mil pessoas à população prisional, por causa da reincidência, é possível estimar o benefício do programa em termos da economia proporcionada ao sistema carcerário. A tomar-se como parâmetro o valor de R$ 1.895,52 como o custo médio anual do preso no Brasil, calculado ao se dividir o orçamento público destinado ao custeio do sistema carcerário pela quantidade de presos no país, conforme proposto em artigo de Beto Vasconcelos, José Eduardo Cardozo, Marivaldo Pereira e Renato De Vitto publicado na Revista Culturas Jurídicas, da Universidade Federal Fluminense (UFF), a economia poderia chegar à casa dos milhões.
Hipoteticamente, se cada uma das 291.443 pessoas autorizadas após audiência de custódia a responder em liberdade tivesse passado, pelo contrário, um ano na prisão aguardando julgamento, o aumento da população carcerária representaria um custo extra de R$ 552 milhões para os cofres estaduais. O valor ainda é uma projeção na medida em que a Justiça conclui muitos dos julgamentos em menos de um ano. No entanto, um dado do mais recente Justiça em Números (2019) revela que um processo criminal no Brasil leva em média três anos e 10 meses para concluir a fase de conhecimento, em que testemunhas são ouvidas e provas são obtidas.
Ao todo, foram realizadas 724 mil audiências de custódia nas capitais e no interior do país, com a participação de pelo menos 3 mil magistrados, inúmeros promotores e defensores públicos, além de advogados particulares. O novo procedimento pós-prisão ajudou a revelar 40,7 mil denúncias de tortura e maus tratos no ato da prisão.
Desde janeiro de 2019, o Programa Justiça Presente trabalha pela qualificação, consolidação e expansão das audiências de custódia em todo o país. No início de 2020, antes da pandemia, o DMF e os consultores estaduais do Programa Justiça Presente discutiam a adoção de parâmetros jurídicos para balizar as decisões dos magistrados nas audiências, mas a pandemia atrasou o planejamento.
Mutirões: análise de meio milhão de processos
Os mutirões carcerários do CNJ reanalisaram, entre 2008 e 2014, pelo menos 491 mil processos de presos provisórios ou condenados, o que levou ao reconhecimento de direitos em 85 mil dos casos. Muitos desses chamados benefícios davam ao condenado o direito a cumprir a parte final da pena em casa, no regime aberto, sob a condição de comparecer regularmente ao juiz, por exemplo. Em outros casos, a Justiça simplesmente reconhecia o direito do preso a ter um trabalho externo, baseado na lei e no comportamento do condenado. Em pelo menos 42,5 mil dos casos revistos (8% do total), no entanto, o preso recebia da Justiça o direito de deixar a prisão.
Uma rápida pesquisa nos relatórios dos mutirões revela a quantidade de prisões ilegais que o programa do CNJ interrompeu. Em 2009, o mutirão encontrou 42 presos com penas vencidas em Alagoas. No ano seguinte, mais de 50 presos além do tempo foram identificados e libertados em Pernambuco. L. G. M. cumpriu sete anos preso na Paraíba, embora tenha sido condenado a três anos e 10 meses. Um cidadão no sistema carcerário do Ceará foi libertado pelo mutirão carcerário em 2013, quando seu alvará de soltura foi expedido em 1989. Encontrado sobre uma cadeira de rodas no Instituto Psiquiátrico Governador Stenio Gomes (IPGSG), em Itaitinga, município vizinho a Fortaleza, o homem de cerca de 80 anos fora preso na década de 1960. Pela contribuição à rapidez e eficácia da realização da justiça o Mutirão Carcerário do CNJ recebeu em 2009 o Prêmio Innovare.
Boa parte dos mutirões ocorreu sob a coordenação do juiz do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), Luciano Losekann. Antes de comandar o DMF entre 2010 e 2013, já acumulava anos de experiência na execução penal e conhecia de perto a realidade do Presídio Central de Porto Alegre. A mais conhecida unidade prisional do Rio Grande do Sul foi eleita o pior presídio do Brasil, de acordo com o ranking da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Carcerário, encerrada em 2008.
Refletindo sobre as causas do superencarceramento no Brasil, onde a população carcerária quadruplicou desde 1995, o magistrado revela os limites do trabalho do Poder Judiciário no combate ao fenômeno. “Em primeiro lugar, é o tipo de sociedade que estamos construindo, que é extremamente excludente. Camadas da população não têm acesso aos bens de consumo, a bens básicos que a maioria deveria possuir. Por outro lado, se estimula um consumismo muito grande. Isso vai se refletir cedo ou tarde na justiça criminal”, afirmou. Ao enviar milhares de jovens todos os anos para as prisões, a cultura do encarceramento retroalimenta o ciclo nacional da violência, devido ao poder que as facções criminosas acumularam nas últimas décadas, na falta de presença efetiva do Estado.
Avanço das facções
Cientes da vulnerabilidade em que se encontra uma pessoa no primeiro dia em uma cela de prisão, as facções criminosas ampliaram nas últimas décadas sua influência dentro e fora das prisões. Arregimentando boa parte da população carcerária, muitas vezes à força de coação, as organizações acabam cooptando também o núcleo familiar do preso para o crime. Muitas mulheres e mães de presos que geralmente ainda visitam o preso na cadeia acabam obrigadas a levar geralmente drogas ou celulares para dentro do presídio, como única opção para evitar que o marido ou o filho seja assassinado lá dentro.
Ao fazer cumprir a Lei de Execução Penal (7.210/84), os mutirões carcerários livraram milhares de pessoas do ambiente carcerário, mas também da chantagem das organizações criminosas que dominam a cadeia. A quantidade de pessoas que entram no sistema anualmente, no entanto, comprometia o esforço histórico da Justiça para evitar que pessoas permanecessem presas de forma ilegal ou desnecessária – a primeira norma do CNJ a abordar tema prisional tratava já em 2006 da execução penal provisória (Resolução CNJ n. 19/2006).
“Sempre se diz que no Brasil se prende muito e se prende mal. Tive oportunidade de ser juiz de execução penal. Muitas vezes, a pessoa fica 10 meses e recebe condenação de uma pena restritiva de direitos, ou seja, ela vai cumprir pena em liberdade, em serviço comunitário, por exemplo. Às vezes recebe pena de prestação pecuniária. Ou seja, por que mantive essa pessoa tanto tempo presa? É uma questão de mudança de sistema. Então é necessária uma autocrítica do judiciário: é necessária essa prisão?”, afirmou Losekann.
Desproporcionalidade
Alguns desses presos eram suspeitos de crimes à espera de um veredito, encarcerados. Com o apoio do CNJ e a supervisão de um magistrado de outro estado, os juízes dos 27 tribunais de justiça reanalisaram os casos e dispensaram a necessidade de mantê-los sob custódia enquanto não se sabia se eram inocentes ou culpados. Meses depois, quando ocorria o julgamento, muitas vezes a pena aplicada era inferior ao tempo que a Justiça levou para julgar o acusado. Essa diferença de tempo entre a pena e o tempo que o condenado passou na cadeia podia ser de semanas ou meses. Em outros casos, a prisão preventiva acaba revelando-se uma punição ainda mais desproporcional ao crime cometido, sobretudo quando o culpado não era sequer sentenciado a uma pena de reclusão.
Leia mais: Justiça Presente diante do “estado de coisas inconstitucional” nas prisões
Acesse o hotsite comemorativo dos 15 anos do CNJ e saiba mais sobre a história do Conselho e de políticas judiciárias implementadas pelo órgão
Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias