“Não sou descendente de escravos. Eu descendo de seres humanos que foram escravizados”. A frase, que nos põe para pensar e mostra a profundidade e amplidão da prática do racismo no Brasil, é da educadora e líder religiosa Makota Valdina, uma das principais ativistas contra o racismo e a intolerância religiosa no país.
Makota Valdina morreu há dois anos, mas sua trajetória de resistência e luta permanece como exemplo e inspiração na defesa por direitos de equidade racial. O pensamento reflexivo dela consta no preâmbulo da ação civil pública que a defensora pública de Minas Gerais, Ana Cláudia da Silva Alexandre Storch, propôs em favor da Comunidade Quilombola de Manzo Ngunzo Kaiango, vítima de discriminação e violação dos seus direitos.
Ana Cláudia Storch, que atua na Defensoria Especializada em Direitos Humanos, Coletivos e Socioambientais (DPDH), explica que o racismo está presente em muitas situações de recusa de acesso a direitos e que a Especializada atua a favor de povos e comunidades tradicionais. “Toda defesa por direitos de equidade racial e respeito pelos ritos e modos de criar fazer e viver destes povos – indígenas, quilombolas, ciganos, ribeirinhos, dentre outros, é também uma luta contra o racismo.”
A ação civil pública foi proposta em 2016, contra o município de Belo Horizonte, e requer a reparação dos danos causados por uma obra realizada sem autorização e participação da Comunidade Quilombola de Manzo Ngunzo Kaiango no seu território tradicional. A obra causou prejuízos de ordem material e ao patrimônio imaterial da comunidade quilombola, com destruição dos seus rituais e espaços sagrados.
Além disso, a comunidade foi retirada durante dez meses do seu território e encaminhada a abrigo municipal, “sem respeito e resguardo à sua identidade e especificidades, sendo submetida a constrangimento moral nas suas relações sociais e afetivas”, conforme a ACP. A ação civil pública aguarda julgamento em primeira instância.
Racismo institucional
Ana Cláudia Alexandre explica que as situações de desrespeito e discriminação vivenciadas pela comunidade podem ser consideradas racismo institucional. O racismo institucional não se expressa em atos manifestos ou explícitos. Ele acontece de forma difusa no funcionamento cotidiano de instituições e organizações, quando favorecem um determinado grupo de indivíduos em detrimento de outros, em razão da etnia. Isso se revela na diferença de tratamento, distribuição de serviços ou benefícios.
Para melhor compreensão do racismo institucional é necessário saber que o racismo institucional é complemento do estrutural, ou seja, o racismo institucional é consequência do racismo estrutural ou, também chamado, racismo estruturado. O racismo estrutural, como o próprio nome já diz, é o tipo de racismo que foi estruturado ao longo do tempo e assim decorre da estrutura social, padrões sociais que são impostos na comunidade.
Dados de 2013 e 2015 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, em pleno século XXI, o histórico de racismo institucional se faz presente e pode ser identificado em diversos âmbitos sociais. Isso acontece em vários campos e de várias formas.
Na saúde, quando pessoas são discriminadas no serviço oferecido, por médico ou outro profissional da área. Um retrato é o alto índice de mortalidade materna (morte na gravidez, parto ou pós-parto) de mulheres negras, com causas classificadas na saúde como evitáveis e preveníveis. Na segurança pública, quando homicídios contra jovens negros são causados pelo racismo, instaurado pelas corporações policiais, e pela ausência de políticas públicas.
Na educação, em que o percentual de negros no nível superior quase dobrou dez anos após a implementação de ações afirmativas, como as cotas. Esses são apenas alguns exemplos de como o racismo institucional se instala em vários âmbitos da sociedade, direta ou indiretamente, por razões históricas.
Política institucional
Em novembro de 2020, a Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG) criou a Câmara de Estudos de Igualdade Étnico-racial, Gênero e Diversidade Sexual. Além dos objetivos comuns com as demais Câmaras de Estudos da DPMG – acompanhar proposições legislativas, discussão de teses institucionais e de estratégias de atuação e aprimoramento da discussão sobre o tema -, a Câmara de Estudos de Igualdade Étnico-racial, Gênero e Diversidade Sexual tem objetivos específicos que repercutem em toda a Instituição.
“Eu vejo esta Câmara com objetivo muito além das questões técnico-jurídicas. Um dos motivos é que ela diz respeito à atuação de todas as defensoras e defensores públicos, e vai interagir com todos, independentemente da área. Vai orientar todos os membros da Instituição e também assessorar a Administração Superior na formulação de normas internas”, observa a defensora pública Marolinta Dutra, que coordena a Câmara.
Para Marolinta, a grande função da Câmara é contribuir para combater o machismo, o racismo, a discriminação de gênero e de orientação sexual –“que estão arraigados em todas as instituições, principalmente nas que compõem o sistema de justiça”. “Além de proporcionar suporte teórico e jurisprudencial aos defensores públicos e à Administração Superior, a Câmara pretende despertar os colegas para uma atuação que seja proativa no combate a essas discriminações estruturais.”
Políticas de inclusão
O defensor público Maxnei Gonzaga, um dos membros da Câmara de Estudos de Igualdade Ética-Racial, Gênero e Diversidade Sexual da DPMG, relata que já enfrentou situações de racismo institucional. No exercício da função de defensor público, Maxnei já foi confundido com pastor durante inspeção em presídio e, durante um intervalo de sessão do júri, momento em que tirou a toga e o paletó do terno, foi confundido com o acusado que defendia.
Ele alerta para a “necessidade de implementação de políticas informativas e educativas voltadas ao estudo e compreensão da temática, para que os membros, estagiários e servidores da Defensoria possam ter o devido letramento racial, para prestar o seu mister de forma inclusiva e adequada”.
Além disso, Maxnei destaca que é extremamente importante a implementação de políticas de inclusão e acesso para alcançar equidade na representatividade de pessoas na Defensoria Pública como um todo, seja nas funções de defensores, servidores, estagiários, de chefia, de assessores, entre outras de evidência, decisão e comando na Instituição.
“Um número maior de pessoas diversas exercendo funções de maior relevância é fundamental para esvaziar o racismo, o preconceito e a discriminação contra certos grupos que são racializadas, pois ao longo de tantos anos a sociedade naturalizou o padrão europeu como símbolo de beleza, riqueza, honestidade, determinação, inteligência e comando em detrimento de outros grupos que são vistos como seres inferiorizados. Com isso, preliminarmente, o imaginário humano coloca cada pessoa no seu lugar”, considera o defensor.
Maxnei destaca a potência da Defensoria Pública no combate ao racismo, principalmente pelo fato de a Instituição somente existir em razão de ter o papel constitucional de promoção, atendimento e defesa dos grupos vulneráveis que, em sua grande maioria, são pessoas desprovidas de recursos financeiros, residem em regiões com IDH baixíssimo e são racializadas pelo poder público e por boa parte da sociedade.
Segundo o defensor, “a Defensoria Pública pode e deve ser exemplo no combate ao racismo e para isso se torna necessário fazer uma autoanálise em relação à sua postura e práticas, observando se as Defensorias Públicas do Brasil não têm o mesmo padrão das demais instituições de poder do Estado que são severamente criticadas”. Para ele, somente após tal reflexão e, havendo o reconhecimento, é possível dar início às devidas mudanças nas suas estruturas, para então ser reconhecida como instituição antirracista.
Maxnei finaliza sugerindo como perceber essa transformação de forma simples e clara. “Observando-se um álbum fotográfico de seus membros, servidores e estagiários, desde o momento da criação da Instituição até hoje. Paralisa-se esta imagem e vamos tirar uma nova fotografia depois de alguns anos para compararmos como estará o padrão deste álbum. Se houver diversidade e equidade na fotografia, atingiremos parte do objetivo.”
Ações afirmativas
Fundamental política institucional da Defensoria mineira para afirmação da equidade racial foi a adoção do sistema de cotas no último concurso para a carreira da Instituição, realizado entre2019 e 2020. Foi o primeiro concurso da Instituição com previsão de 20% do total das vagas reservadas para candidatos negros e pardos, cujo edital também contemplou a constituição de Comissão de Verificação da autodeclaração do candidato negro e procedimento próprio, tudo com vista à efetivação da política pública de inclusão racial.
O cuidado da Defensoria de Minas com a efetivação plena da política de cotas raciais ficou demonstrado com a reflexão que a Instituição se propôs, por meio do Procedimento nº 29/2021, proposto pela conselheira Liliana Soares Martins Fonseca e deliberado pelo Conselho Superior da DPMG. O Procedimento foi uma vitória para a concretização, na Defensoria mineira, do sistema de cotas em sua integridade, garantindo a igualdade não meramente formal, mas sim material.
Com a decisão do Conselho sobre o Procedimento, o sistema de cotas, que estava sendo considerado até a convocação dos novos defensores, passou a ser considerado em todas as fases do concurso, observando o critério de alternância e proporcionalidade que a lei determina. A conselheira Liliana Fonseca, relatora do Procedimento, explica que a lei de cotas tem que ter efeito em todas as fases para garantir a igualdade material. “Os cotistas já devem ser inseridos na lista de nomeação exatamente na colocação em que eles foram convocados, como disposto no edital: a cada quatro candidatos, um seria negro. Isso garante aos cotistas a posição correta, que repercute na escolha de comarcas, de lotação e na composição da lista de antiguidade.”
“O Procedimento garantiu que a DPMG tivesse a interpretação normativa adequada e condizente com o principal objetivo do sistema de cotas”, afirma. Ela considera que houve um avanço expressivo no combate ao racismo e pondera que existem ainda outras questões a serem debatidas e implementadas pela Defensoria mineira. “É preciso que todos tenham conhecimento sobre o que é o racismo estrutural e que a Instituição, assim como todo o sistema de justiça, ainda é racista. Para combater o racismo concretamente, primeiro precisamos conhecer e reconhecer que ele existe.”
Estereótipos
Em Minas Gerais, uma pessoa negra tem entre quatro e cinco vezes mais chances de ser morta pela Polícia Militar do que uma pessoa branca. Nas prisões em flagrantes, uma pessoa negra tem entre duas e três vezes mais chance de ser presa do que uma pessoa branca.
Esses números fazem parte da pesquisa “Policiamento e relações raciais: estudo comparado sobre formas contemporâneas de controle do crime”. O estudo, elaborado por quatro universidades integrantes do INCT-InEAC (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Estudos Comparados em Administração de Conflitos), durou quatro anos, de 2013 a 2017.
Em 2020, a Defensoria Pública de Minas conseguiu a absolvição de um jovem negro de 26 anos, acusado indevidamente pelos crimes de homicídio tentado e consumado, ambos qualificados por motivo torpe e recurso que dificultou a defesa da vítima, e corrupção de menores. Como em muitas outras situações similares que ocorrem em todo o país, o jovem foi confundido em abordagem policial baseada na cor da pele e ficou preso injustamente por quase dois anos.
Ele foi absolvido em sessão plenária do Tribunal do Júri. Para o defensor público Cantídio Dias de Freitas Filho, que atuou na defesa do assistido, “o caso é emblemático e espelha o racismo estrutural e institucional que assola o nosso país e escancara os preconceitos e estereótipos enfrentados pela população negra”.
Penitenciárias
Dados do 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em outubro de 2020 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontam que em 15 anos a proporção de negros no sistema carcerário cresceu 14%, enquanto a de brancos diminuiu 19%. Hoje, de cada três presos, dois são negros. Segundo a publicação, existe forte desigualdade racial no sistema criminal, percebida na maior severidade de tratamento e de punições direcionadas aos negros.
No artigo “Discriminação Racial e Justiça Criminal em São Paulo”, Sérgio Adorno conclui que “brancos e negros cometem crimes violentos em idênticas proporções, mas os réus negros tendem a ser mais perseguidos pela vigilância policial, enfrentam maiores obstáculos de acesso à justiça criminal e revelam maiores dificuldades de usufruir do direito de ampla defesa assegurado pelas normas constitucionais”. “Em decorrência, tendem a receber um tratamento penal mais rigoroso, representado pela maior probabilidade de serem punidos, comparativamente aos réus brancos. Tudo indica, por conseguinte, que a cor é poderoso instrumento de discriminação na distribuição da justiça.”
Na tese “A Discriminação Racial pelo Sistema de Justiça Criminal: uma análise sob a luz do princípio da igualdade e do acesso à justiça”, a pesquisadora Cristiane Vieira Maschio também afirma que o racismo compromete a neutralidade dos julgamentos. A vulnerabilidade de jovens negros a situações de violência física e simbólica fica clara nos números levantados pelo “Mapa do Encarceramento: os jovens do Brasil” produzido em 2016 pela pesquisadora Jacqueline Sinhoretto, em parceria com a Secretaria Nacional de Juventude (SNJ), Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no Brasil.
A publicação evidencia o crescimento do encarceramento no país entre 2005 e 2012. Este crescimento foi impulsionado pela prisão de jovens, de negros e de mulheres. Os crimes que mais motivam prisões são patrimoniais e drogas, os quais somados atingem cerca de 70% das causas de prisões. Crimes contra a vida motivam 12% das prisões. Conforme o Mapa do Encarceramento, “as penas atribuídas são na maioria inferiores a oito anos, seguidas das penas inferiores a quatro anos, sendo que uma grande quantidade dos presos tem condição provisória (isto é, ainda não foram julgados). Isto indica que o policiamento e a justiça criminal não têm foco nos crimes mais graves, mas atuam principalmente nos conflitos contra o patrimônio e nos delitos de drogas”.
Em Minas Gerais, a situação não é diferente. Dados de 2018 da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública, divulgados pelo jornal O Tempo, revelam que a cada branco assassinado no estado, quatro negros foram mortos. Ao mesmo tempo, nos presídios mineiros, quase 70% dos encarcerados também são pretos e pardos. Segundo a reportagem, os números evidenciam dois resultados de um racismo estrutural e histórico, que empurra uma parcela considerável dos negros para dois tipos de finais: prisão ou morte.
Os tipos de delitos que mais motivam prisões de negros em Minas também acompanham o cenário nacional, já que no estado, 46,55% dos pretos que estavam encarcerados em 2018 respondiam por tráfico de drogas, e uma parcela de 19,9% deles, por homicídio. O perfil da população carcerária deixa evidente que a seletividade penal recai sobre segmentos específicos (jovens e negros), privilegiando delitos econômicos de pequena monta. Entre os custos sociais desse encarceramento está a vulnerabilização de negros, jovens e mulheres, que recebem a punição em presídios superlotados.
O defensor público Sérgio dos Santos, também integrante da Câmara de Estudos de Igualdade Étnico-Racial, Gênero e Diversidade Sexual, enfatiza que “são necessárias políticas públicas efetivas para o enfrentamento dessa verdadeira tragédia social”. Para ele, “refletir sobre o racismo, a partir de uma visão revelada de um caso e a prevalência de um estereótipo e sua naturalização, somada à cruel e reiterada letalidade contra os jovens negros no Brasil, nos obriga a posicionarmos enquanto membros de uma instituição”.
“Nosso propósito e missão é atender às necessidades da sociedade, na garantia de acesso à justiça e dignidade da pessoa humana. Acredito que neste sentido a Câmara de Estudos de Igualdade Étnico-Racial, Gênero e Diversidade Sexual recém-criada, não obstante ao gigantesco desafio que se apresenta, constitua-se em um verdadeiro novo marco”, finaliza Sérgio dos Santos.
A pandemia do novo coronavírus acentuou a invisibilidade histórica dos diferentes, que sofrem os efeitos, tanto no risco de contágio, quanto no tratamento da doença e na vacinação. Mesmo grupos que são prioridade no Plano Nacional de Imunização não têm a garantia do cumprimento desse direito.
Para que o acesso à vacinação não seja um vetor adicional de ampliação das disparidades sociais e étnico-raciais e garantir a efetividade de imunização prioritária de Covid-19, a Defensoria Pública de Minas Gerais, juntamente com a Defensoria Pública da União e o Ministério Público Federal emitiram, em abril, recomendação conjunta para o Estado orientar os municípios mineiros na vacinação quilombola. Tanto o MPF quanto a DPMG acompanham, por meio de inquérito civil e procedimento administrativo, as medidas de proteção a comunidades quilombolas no contexto do enfrentamento da pandemia de Covid-19 no estado.
A defensora pública Ana Cláudia Storch, que assina a recomendação pela DPMG, conta que os profissionais de saúde estavam indo nas comunidades e selecionando quem eles achavam que deveriam ser vacinados. Após interlocução da defensora com a Prefeitura de Belo Horizonte, todas as pessoas da Comunidade Quilombola de Manzo Ngunzo Kaiango foram vacinadas. A partir da recomendação, DPMG, DPU e MPF esperam que todas as comunidades de Minas Gerais tenham o mesmo tratamento.
Campanha nacional
Desde 2008, a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep), em parceria com as Associações Locais e Defensorias Públicas dos estados e do DF, lança no mês de maio – mês da defensora e do defensor público e Dia Nacional da Defensoria Pública – a campanha nacional. O projeto tem por objetivo apresentar o papel da Defensoria Pública e o trabalho da defensora e do defensor público como agente de transformação social, além de conscientizar as pessoas sobre os seus direitos.
Fonte: DPMG