Representantes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) participam ao longo desta segunda-feira (14/6) da audiência pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o sistema penitenciário brasileiro. A audiência foi convocada pelo ministro Gilmar Mendes, relator do HC coletivo 165.704, em que se estendeu a substituição da prisão cautelar por domiciliar dos pais e dos responsáveis por crianças menores de 12 anos e por pessoas com deficiência – o HC 143.641 concedido anteriormente era direcionado a mulheres.
Considerando a pertinência temática, a audiência pública também atualiza o cenário do estado de coisas inconstitucional (ECI) das prisões brasileiras reconhecido pelo STF no julgamento cautelar da ADPF 347 em 2015. “É preciso que tenhamos a coragem e a disposição para cumprir com as nossas funções”, pontuou ao também ressaltar as atribuições do Poder Executivo, do Poder Legislativo e da sociedade civil – representados por mais de 50 especialistas, instituições públicas e de organizações sociais que participam como expositoras ao longo da audiência pública.
O ministro ressaltou a criação do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Penitenciário (DMF/CNJ) durante sua gestão, que de acordo com o ministro vem exercendo importante trabalho de coordenação e de melhoria progressiva e paulatina do sistema. “Os mutirões carcerários e o programa Começar de Novo ajudaram a reduzir o número de prisões indevidas e apresentaram novas perspectivas de ressocialização”, destacou. Segundo a ministra Cármen Lucia, que também participou da abertura da audiência, a situação carcerária brasileira é “uma chaga sociopolítica e principalmente jurídica”. Ela acrescentou que o sistema prisional é desumano e caótico e que a audiência poderá contribuir na busca de resultados capazes de aprimorá-lo.
Atuação do CNJ
Atual supervisor do DMF/CNJ, o conselheiro Mario Guerreiro elencou esforços voltados ao enfrentamento do estado de coisas inconstitucional do sistema prisional. “É preciso compreender que estamos diante de falhas estruturais e que só podem ser superadas mediante a atuação consertada de vários atores, em diferentes frentes. O Brasil ainda segue na contramão de uma política penal que propicie responsabilização adequada e justiça social.”
Guerreiro ressaltou o trabalho que vem sendo feito 2019 por meio de parceria entre CNJ e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), com apoio do Ministério da Justiça e Segurança Pública, na figura do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), hoje o programa Fazendo Justiça. “São 28 ações que trabalham em todo esse ciclo penal e socioeducativo, partindo da porta de entrada e passando pelo processo instrutório e pela execução penal e socioeducativa, além da atenção à pessoa egressa, com resultados que contribuem de maneira concreta e sustentável para a superação do estado de inconstitucionalidade persistente nos sistemas carcerários socioeducativos brasileiros.”
Acerca do tema do HC 165.704, o supervisor do DMF destacou a aprovação de normativa na área. “Em estreito alinhamento com as determinações e diretrizes do Supremo Tribunal Federal, o CNJ aprovou a Resolução n. 369/2021 e passou a estabelecer procedimentos e diretrizes para a substituição da privação de liberdade de gestantes, mães, pais responsáveis por crianças e pessoas com deficiência.”
A conselheira do CNJ Maria Tereza Uille Gomes também participou do diálogo compartilhando dados sobre encarceramento feminino e normativas que tratam sobre gestão e inovação, como as Resoluções CNJ n. 333/2020 e a nº 395/2021. A conselheira apresentou propostas com foco em soluções rápidas e de baixo custo, como a aplicação de formulário autodeclaratório para a coleta de informações da pessoa presa, o que permitiria melhor conhecer o perfil das pessoas sob custódia do Estado.
“Com base nessas informações, seria possível pensar em etiquetas a serem aplicadas aos processos chamando atenção para peculiaridades das pessoas encarceradas que demandam cuidados específicos – como no caso de idosos, de pessoas com deficiência, com doenças graves ou de responsáveis por crianças de até 12 anos, assim como o caso de mães com crianças em creches nas unidades penais”, pontuou.
Estado de coisas inconstitucional
Pela manhã também falou o ex-ministro de Segurança Pública Raul Jugmnann. “Hoje o principal motor da violência e da insegurança no Brasil está no seu sistema prisional. A segurança pública no Brasil aprofunda, agudiza e, de certa forma, expande a própria violência e a criminalidade, porque o sistema prisional brasileiro está fora do controle do Estado”. Jugmann também pontuou os impactos trazidos pela Lei de Drogas. “Tem sido de grande contribuição para esse estado de coisas ao não distinguir tratamento entre traficante e usuário, agudizando a superlotação e outros problemas.”
A perspectiva também foi compartilhada pelo jurista Daniel Sarmento, da Clínica de Direitos da UERJ, para o qual não há saída para o estado de coisas inconstitucional que não passe pela redução da a superlotação carcerária. A Clínica de Direitos elaborou e patrocinou a ADPF 347, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). “Quando a ação foi ajuizada nós abordamos o estado dantesco das prisões brasileiras, com superlotação, com celas imundas, com falta de acesso à alimentação adequada, a medicamentos, domínio por facções criminosas, massacres frequentes. De lá pra cá, passados quase seis anos, a situação não melhorou, pelo contrário, se agravou.”
Dentre as propostas para enfrentar a situação, Sarmento defendeu a elaboração de um plano de monitoramento da ADPF 347 e apontou o papel do CNJ.“É fundamental que haja um plano pra redução da superlotação e enfrentamento dos outros aspectos ligados à violação da dignidade dos presos. E a instituição hoje com mais condições de elaborar esse plano, de monitorar o seu cumprimento, é o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do CNJ.”
Diálogo amplo
Impetrante do HC 165.704, a Defensoria Pública da União foi representada por seu secretário de Atuação no Sistema Prisional, Walber Rondon Ribeiro Filho, que abordou a relevância da Resolução CNJ n. 369/2021 para efetivar a ordem de habeas corpus concedida.Também falaram a Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), por meio da defensora Rivana Barreto Ricarte, e o Conselho Nacional de Defensores Públicos Gerais (Condege), representado pela defensora Fabíola Pacheco.
A audiência ouviu também representantes de egressos e familiares do sistema prisional, como a Frente Estadual pelo Desencarceramento e Presidente da Associação de Amigos e Familiares de Pessoas Privada de Liberdade de Minas Gerais, representada por Maria Teresa Santos. “As famílias que têm uma pessoa privada de liberdade estão vivendo em tempo de terror, onde a gente fica sem saber a notícia do filho durante muito tempo e alguns recebem depois o corpo em um caixão lacrado. No cárcere não há saúde, não tem comida, não tem água – as pessoas são depositadas naquele local para morrer. Mais do que falar de dados, precisamos saber o que fazer com eles.”
O primeiro ciclo de exposições da audiência pública contou ainda com participação do subprocurador-geral da República Carlos Vilhena; de representantes do Poder Legislativo, na figura dos deputados Alberto Neto e Rafael Motta; do Conselho Nacional de Justiça (CNMP), pelos promotores Marcelo Weitzel Rabello de Souza e Alexey Caruncho; do ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça Néfi Cordeiro e da desembargadora federal Taís Schilling Ferraz. Pela sociedade civil, participaram o professor Carlos Alexandre de Azevedo; o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais; a Conectas Direitos Humanos e a Pastoral Carcerária.
Marília Mundim
Agência CNJ de Notícias