Artigo: Desestatizar o Judiciário

Compartilhe

Joaquim Falcão*

Numa democracia, a influência do Poder Judiciário tende a crescer. Hoje, o Supremo Tribunal Federal detém, mais e mais, o poder final, a palavra final, sobre o equacionar dos conflitos sociais – econômicos, políticos ou mesmo culturais. Sejam micro ou macro. A curva de influência do juiz e dos ministros nos caminhos do desenvolvimento nacional é crescente. Na economia também. Entretanto, esse crescimento nem sempre é saudável. Às vezes é patológico. É “inchação”, como disse um sociologicamente arguto Gilberto Freyre sobre o Recife: “O Recife não cresceu, inchou”.

As recentes estatísticas são reveladoras. Demonstram espetacular crescimento dos processos que chegam ao Supremo: 3.156% de 1940 até setembro de 2007. No mesmo período, segundo o IBGE, a população brasileira cresceu 446,3%. Ou seja, o número de processos no Supremo aumentou sete vezes mais que a população. Só nos últimos 20 anos, esse aumento foi de 425,25%. Ao mesmo tempo, tomando por base o número de processos julgados em 2006 (110.284), dividido pelo número de ministros da Corte, resta evidente a necessidade de controlar a inchação. É humanamente impossível que um ministro esteja decidindo mais de 10 mil causas por ano.

A tendência à inchação é também percebida nas estatísticas do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que veio a substituir o antigo Tribunal Federal de Recursos (TFR). Em toda sua vida, de 1946 a 1988, o TFR julgou 418.724 processos. Já o STJ, apenas de 1989 até setembro de 2007, julgou mais de 2 milhões de processos (2.067.184). Um crescimento de 393,7% enquanto a população brasileira, no mesmo período, cresceu em torno de 25,4%. Inviável, assim, oferecer uma prestação judicial como necessita a sociedade e o próprio conceito de justiça.

Análise mais rigorosa sobre a natureza das causas revela que: (a) são causas repetitivas; (b) são causas que envolvem principalmente interesses ligados ao Estado, sejam disputas intra-estatais com funcionários públicos, sejam disputas fiscais e previdenciárias; (c) são processos, milhões deles, decorrentes dos planos econômicos que, não raramente – hoje o Supremo reconhece -, feriram direitos adquiridos, contrariaram o Estado de Direito, afetando pensionistas, trabalhadores e investidores. Trata-se, pois, evidentemente, da estatização da pauta do Supremo.

Segundo o Diagnóstico do Judiciário, elaborado pela Secretaria de Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça, nada menos do que 79% dos processos autuados no Supremo Tribunal Federal de 1999 a 2003 tinham como parte alguma entidade do Poder Público. Considerando apenas entidades públicas federais, seriam 65% dos processos. De um total de 447.298 processos, 41.152 (9,2%) tinham a União como parte, 51.439 (11,5%) o INSS, 196.811 (44%) a Caixa Econômica Federal e 447 (0,1%) o Banco Central.

Combater a “inchação” do Judiciário implica, portanto, dupla estratégia. De um lado, exige o compromisso permanente com o crescimento da qualidade da prestação jurisdicional. De outro, importa num esforço de diminuição quantitativa das demandas judiciais. Seja ao incentivar a conciliação, seja ao repensar a utilização da Justiça pelo Poder Executivo. Nesse sentido, o advogado geral da União firmou, recentemente, junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), acordo para promover estudos e uniformizar teses em relação a situações já pacificadas nos tribunais superiores. Se a AGU colocar em prática essa diretriz, será um grande avanço para desestatizar a pauta da Justiça. O que ultrapassa o âmbito do Judiciário. Depende, por exemplo, da redefinição da relação entre Poder Executivo, CNJ e AGU.
________________________________________________________________________________
(*) Joaquim Falcão é diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (RJ) e membro do Conselho Nacional de Justiça

Artigo publicado em 29 de novembro de 2007