O controle sobre os dados pessoais que uma pessoa forneça, a autodeterminação informativa prevista na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), decorre do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Em palestra no Congresso Nacional de Registro Civil (Conarci 2021), o presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Luiz Fux, traçou as origens históricas desse novo dispositivo legal que condiciona as atividades econômicas realizadas na internet à liberdade individual.
De acordo com o ministro, a dignidade humana surge no ordenamento jurídico depois das barbáries cometidas pelo nazifascismo na Segunda Guerra Mundial. Na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) proclamou que todos “os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” e que ninguém será sujeito à “interferência em sua vida privada, em sua família, em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação”, sendo protegidos pela lei.
Anos depois, a Constituição Federal de 1988 consagraria o princípio da dignidade humana na base da promessa de uma sociedade justa e equitativa. De acordo com Fux, para ser concretizada, a dignidade demanda o poder da autodeterminação. O presidente do CNJ lembrou o caso em que um policial, ao salvar um preso do suicídio, cortou-se com um caco de vidro e assim contraiu uma doença que o tornaria miserável, forçado a gastar 80% dos seus rendimentos em remédios.
“O homem peregrinou 10 anos até chegar ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ali nós entendemos, à luz da dignidade humana, que não seria lícito ter a vida legada à própria sorte, em razão da doença que contraiu salvando a vida alheia. A dignidade reclama autodeterminação. No limite da vida, da sobrevivência, não se tem autodeterminação e não se ostenta dignidade”, afirmou o ministro.
Em 2000, surge a “autodeterminação informativa” na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, com a previsão do artigo 8º à proteção dos dados pessoais, após um debate surgido anos antes, na antiga Alemanha Ocidental. Um grupo de habitantes se recusava a responder parte do censo demográfico por ignorar o que seria feito das respostas. De acordo com Fux, situação semelhante acontece hoje, quando se ignora que o uso dos dados pessoais tem repercussão econômica ímpar. As informações subsidiam decisões comerciais. A partir delas, decifra-se o interesse de compra de determinada mercadoria, captam-se clientes e definem-se estratégias de vendas, por exemplo.
A proteção de dados também envolve pessoas jurídicas, segundo o presidente do CNJ, que lembrou de uma decisão do STF que obrigou a Receita Federal do Brasil a informar a uma empresa em processo de aquisição todos os processos administrativos em curso contra ela. A autodeterminação informativa também contribui para o voto “consciente”, ao permitir que o eleitor tenha informações sobre os candidatos na disputa eleitoral.
“No que eu chamo de desenvolvimento tecnológico sustentável, assim como há a liberdade de proliferação dos dados, há a garantia dessa denominada autodeterminação informativa: saber para que fim os dados serão utilizados. Daí a ideia da transparência, princípio da LGPD, a ideia da segurança, para que os dados não sejam vazados para fins ilícitos, e da finalidade, pois a concessão de dados deve ser necessariamente para fins lícitos”, afirmou o ministro.
LGPD e cartórios
A cerimônia de abertura do evento, realizada na noite de quinta-feira (18/11), teve a presença da corregedora nacional de Justiça, ministra Maria Thereza de Assis Moura, que informou sobre a regulamentação das atividades notariais diante da LGPD. O texto, em fase final de elaboração, é objeto de grupo de trabalho nomeado em setembro de 2020 pela ministra corregedora.
“Diante desse disruptivo marco legal que constitui novo paradigma no tratamento das informações pessoais do cidadão, a Corregedoria Nacional de Justiça voltou-se à cuidadosa regulamentação e fixação de princípios e diretrizes de caráter uniforme que servirão de base para as atividades notariais e registrais”, afirmou a ministra.
Maria Thereza ressaltou a atenção dedicada pela Corregedoria Nacional de Justiça aos cartórios, devido à importância das serventias extrajudiciais para a cidadania. Ela lembrou que o serviço prestado pelos cartórios, ao fornecer gratuitamente registro de nascimento de crianças, faz a pessoa recém-nascida passar a existir juridicamente para o Estado. Esse é o primeiro passo para uma pessoa poder exercer direitos fundamentais assegurados por meio de políticas públicas, como o direito à educação e à saúde. No entanto, como afirmou, em muitos lugares do país ainda subsiste o fenômeno do sub-registro civil – brasileiros e brasileiras que nascem e não são registrados.
Prioridade de gestão
Quando definiu o combate ao sub-registro civil como um dos objetivos do seu mandato bienal, a gestão da ministra à frente da Corregedoria Nacional de Justiça priorizou a operação dos cartórios. Neste ano, a Corregedoria propôs uma diretriz estratégica para o funcionamento do Poder Judiciário em 2022 que prevê três linhas de atuação: aumento de unidades de registro de recém-nascidos em maternidades que sejam interligadas ao sistema nacional nas 27 unidades da Federação, ações nas localidades onde há mais sub-registro civil e prioridade à tramitação de processos que tratam do registro tardio de pessoas.
A diretriz segue a linha de uma das iniciativas já realizadas pela Corregedoria Nacional de Justiça, quando mobilizou as corregedorias-gerais de Justiça dos tribunais estaduais para buscar dotar mais municípios de pelo menos um serviço que registre, ainda na maternidade, os recém-nascidos no sistema nacional de identificação civil. Em quatro meses, os tribunais conseguiram acrescentar, ao cadastro do CNJ, 130 dessas unidades de registro aos 660 municípios que não tinham sequer uma unidade interligada ao sistema nacional, conforme levantamento do governo federal.
“O combate ao subregistro civil para sua progressiva erradicação deve ser tido como meta relevantíssima para a cidadania, baseada na busca da regularização da existência jurídica dos nascidos vivos e da afirmação da nacionalidade para efetiva construção da própria nação
Gratuidade e sobrevivência
Como cada vez mais as pessoas de baixa renda dependem dos serviços públicos para sobreviver, e aumenta a importância da continuidade e da gratuidade do serviço prestado pelos cartórios. No entanto, alguns ofícios de registro de pessoas naturais, sobretudo aqueles localizados longe dos centros econômicos, não arrecadam o suficiente e dependem de ajuda financeira para manter as portas abertas.
Foi por isso que, em 2018, a Corregedoria Nacional de Justiça editou um provimento para assegurar que os tribunais de Justiça pagassem um valor mínimo aos chamados registradores de pessoas naturais “com a finalidade de garantir a presença do respectivo serviço registral em toda sede de municipal e nas sedes distritais dos municípios de significativa extensão territorial assim considerado pelo poder delegante”.
Muitas localidades, no entanto, têm cartórios de registro de pessoas naturais que ainda não recebem a renda mínima para seguir funcionando, de acordo com o que descobriram inspeções realizadas pela Corregedoria Nacional de Justiça no primeiro semestre. Para mudar essa realidade, a corregedora propôs como diretriz para a Estratégia Nacional do Poder Judiciário em 2022 assegurar, aos pequenos cartórios, seu equilíbrio econômico e financeiro e, assim, dar efetividade ao Provimento editado em 2018. Foi a primeira vez que uma diretriz dessa natureza foi encaminhada à avaliação dos presidentes dos tribunais que aprovarão, no encontro nacional agendado para os próximos dias 2 e 3 de dezembro, as metas e diretrizes estratégicas nacionais do Poder Judiciário em 2022.
“Tenho a convicção de que, uma vez provada, a diretriz estratégica alicerçará a movimentação dos tribunais de Justiça no sentido do fortalecimento das unidades extrajudiciais com atribuição do registro civil das pessoas naturais, providência que contribuirá para o aprimoramento da prestação do serviço e para que as unidades vagas a serem oferecidas nos concursos de provas e títulos sejam providas assegurando a capilaridade nacional dos ofícios dessa especialidade”, afirmou a ministra.
Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias