O processo desencadeado pelo CNJ em 2008 com os mutirões carcerários – e ampliado em 2020 pelo Justiça Presente – institucionalizou a defesa dos direitos humanos, trabalho que até então era mais associado a organizações do terceiro setor, não ao Estado brasileiro. Impedir que condenados ficassem na prisão além do tempo estabelecido em sentença representou legalidade em um ambiente acostumado a violações de direitos básicos. Em 2015, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.° 347, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou a situação prisional no país um “estado de coisas inconstitucional”, com “violação massiva de direitos fundamentais” da população prisional, por omissão do poder público.
Uma das medidas cautelares concedidas pelo Plenário foi a liberação de recursos do Fundo Nacional Penitenciário (Funpen) e a proibição de contingenciá-los. Nos dois anos seguintes à decisão do STF, a execução anual do orçamento do Funpen foi a maior desde 2000, quando o Tribunal de Contas da União (TCU) iniciou série histórica. Em 2016 e 2017, foram repassados aos fundos penitenciários de estados e municípios R$ 1,48 bilhão e R$ 997 milhões, respectivamente, de acordo com relatório orçamentário do Fundo publicado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Os valores se referem ao contratado em bens e serviços para manutenção de unidades prisionais e investimentos no aprimoramento do sistema carcerário – segurança, formação, especialização do serviço penitenciário, entre outras finalidades.
As deficiências das condições de encarceramento, no entanto, são históricas. Os desrespeitos aos direitos humanos da população sob custódia desafiam as iniciativas do Poder Judiciário. Por isso, o Brasil responde questionamentos e medidas cautelares da Corte Interamericana de Direitos Humanos praticamente desde que o Estado brasileiro passou a reconhecer a competência do tribunal para julgar violações de direitos humanos, em 1998. O primeiro caso que levou o país à corte foi o massacre no Presídio Urso Branco, uma rebelião em Porto Velho que, em 2002, acabou com a morte de 27 presos.
A mais recente resolução da Corte envolvendo o sistema prisional brasileiro solicitou, em 2016, medidas imediatas para reverter a precariedade do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, no Rio de Janeiro, justamente o primeiro presídio a receber o mutirão carcerário do CNJ, oito anos antes. O relatório do tribunal apontou risco de incêndios por causa da fiação exposta, falta de acesso a água, ventilação e iluminação inadequadas, déficit de médicos, medicamentos e outros problemas que compunham um cenário de insalubridade e superlotação que ameaçava a integridade física dos presos. Morreram 13 internos nos primeiros seis meses de 2016.
Avanços
Apesar de não ter detido a superlotação e a insalubridade das penitenciárias brasileiras, a atuação do CNJ registra avanços, segundo o juiz do Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA) e coordenador do DMF entre 2013 e 2014, Douglas Martins Melo. Ele acompanha há anos a situação de um dos mais problemáticos presídios do país, o Complexo de Pedrinhas, pois era juiz de execução penal da Capital. Após um mutirão carcerário no estado, no início da década passada, o CNJ deixou aos representantes do poder público local uma série de recomendações para melhorar o sistema prisional maranhense, desorganizado e mantido sob o controle de violentas facções do crime organizado.
Da época em que ainda era responsável por fiscalizar Pedrinhas, o juiz se lembra de chegar ao presídio no dia seguinte à rebelião que terminou com a decapitação de 18 presos. Hoje, o quadro é outro. “O sistema prisional do Maranhão quase não tem registro de mortes, quando antes havia muitos. O número de pessoas ocupadas é enorme, com presos participando inclusive em obras públicas, são outras políticas públicas em curso”, afirmou.
Pandemia
Em 2020, a emergência sanitária global agravou ainda mais o “estado de coisas inconstitucional” no sistema prisional. Para se evitar que a doença vitimasse cidadãos sob custódia e responsabilidade do Estado, o CNJ emitiu recomendação endereçada a tribunais e magistrados com propostas de ações preventivas ao novo coronavírus no sistema prisional e no sistema socioeducativo, como a adoção de medidas alternativas à prisão para mulheres grávidas, crianças, mães com filhos até 12 anos, indígenas, pessoas com deficiência e outros grupos de risco.
A concessão de saída antecipada poderia contemplar os casos previstos em lei e na jurisprudênciaJurisprudência é um termo jurídico, que significa o conjunto das decisões, aplicações e interpretações das leis A jurisprudência pode ser entendida de três formas, como a decisão isolada de um... More, assim como a adoção de prisão domiciliar para os presos em regime aberto ou semiaberto ou que apresentassem sintomas da doença. O CNJ também recomendou medidas que evitariam o contato físico entre internos e o mundo exterior, como audiências de custódia, visitas na prisão e saídas temporárias, por exemplo. Nos três primeiros meses de vigência da recomendação, estendida em junho por mais 90 dias pelo Plenário do CNJ, pelo menos 32,5 mil pessoas tiveram suas prisões modificadas para a prisão domiciliar ou a monitoração eletrônica como consequência da adoção da Recomendação 62/2020.
Levantamento feito pelo CNJ com informações dos governos dos estados três meses depois do primeiro caso registrado no Brasil indicaram a contaminação de 2,2 mil casos no sistema carcerário brasileiro. Até 25 de maio, o mesmo levantamento revelou o adoecimento de 44 adolescentes internados no sistema socioeducativo, além de 263 servidores, com oito mortes de servidores.
O presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, defendeu a medida diante de uma situação excepcional. “Estamos diante de uma pandemia com efeitos ainda desconhecidos. Mas não há dúvidas quanto à urgência de medidas imediatas e de natureza preventiva para os sistemas prisional e socioeducativo, considerando o potencial de contaminação em situação de confinamento de pessoas que se encontram sob a tutela do Estado. É imperativo que o Judiciário não se omita e adote uma resposta rápida e uniforme, evitando danos irremediáveis”, afirmou.
Reconhecimento internacional
Nas semanas seguintes à publicação da Recomendação CNJ n. 62, em 17 de março, a medida recebeu o apoio de entidades que militam pelos direitos dos cidadãos encarcerados no Brasil e no exterior. O Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais (Condege), a Associação para a Prevenção da Tortura (APT) e a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep) manifestaram apoio ao documento.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sugeriu a medida aos países do continente americano. “A CIDH apoia a iniciativa do CNJ e conclama os poderes judiciários e outros atores de justiça dos estados da região a adotarem medidas similares, focadas na redução do risco epidemiológico do COVID-19 com uma perspectiva de direitos humanos”, afirmou em nota pública.
O escritório brasileiro do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD Brasil) divulgou a Recomendação do CNJ como boa prática para diversos países. “O PNUD conta com uma ampla rede de escritórios que busca sempre compartilhar as melhores práticas para fortalecer o desenvolvimento dos países. Nesse sentido compartilhamos também a experiência do CNJ, que é pioneira em relação a prevenção do Covid-19 no sistema prisional e socioeducativo”, avaliou a representante-residente assistente e coordenadora de área programática do PNUD no Brasil, Maristela Baioni. Desde janeiro de 2019, PNUD Brasil e CNJ realizam em parceria o programa Justiça Presente, que enfrenta problemas estruturais no sistema prisional e socioeducativo.
Com auxílio do Justiça Presente, o DMF monitora permanentemente a adoção nos sistemas prisionais dos estados das medidas recomendadas pelo CNJ para conter a pandemia nos presídios e nas unidades de internação de adolescentes. O balanço de abril revela alguns desdobramentos da Recomendação CNJ n. 62/20, como as normativas estaduais que destinam as penas pecuniárias a prevenção, a adoção protocolos e planos de contingência, além de modificações nos regimes fechado e semiaberto e alterações em visitações e entregas de insumos.
massa crítica e quadros especializados
Além dos programas e políticas públicas implantados pelo CNJ na área prisional, o DMF propôs um debate nacional sobre questões específicas do encarceramento no Brasil, terceiro país com mais presos no mundo, atualmente. Com seminários temáticos realizados ao longo dos 10 anos de existência do órgão, o DMF reuniu a massa crítica em torno do tema e aprimorou a formação dos quadros da magistratura brasileira.
Nos seminários de justiça criminal e outros eventos promovidos pelo CNJ, a experiência empírica dos juízes é associada ao conhecimento de especialistas da Academia e dos ativistas da defesa dos direitos humanos, além das autoridades do Poder Judiciário e do Poder Executivo que lidam com a crise prisional. Em fevereiro de 2016, o presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), James Cavallaro, participou do 2º Fórum Nacional de Alternativas Penais (Fonape). Veio defender o uso criterioso da prisão preventiva como forma de enfrentar o superencarceramento. “A população carcerária no Brasil cresceu quatro vezes em 20 anos, para cerca de 600 mil pessoas, dos quais cerca de 40% não foram julgados. Há mais presos provisórios que o total de presos no país em 1995”, disse o professor James Cavallaro.
Seminários sobre mulheres encarceradas, por exemplo, estiveram na origem de medidas que seriam tomadas anos depois, para proteger os direitos dessa população. Em 2011, o CNJ editaria e distribuiria nos presídios a Cartilha da Mulher Presa, uma publicação explicativa dos direitos e deveres que valem para um segmento da população prisional que se multiplica ano a ano. Enquanto no ano 2000 as prisões do país tinham cerca de 5,6 mil mulheres, hoje esse número é sete vezes maior – ultrapassa a casa das 37 mil presas. Em janeiro de 2018, o CNJ criaria o Cadastro Nacional de Presas Grávidas e Lactantes.
Desdobramentos
“Não quero que nenhum brasileirinho nasça dentro de uma penitenciária; isso não é condição precária, é de absoluta indignidade”, afirmou à época a presidente do CNJ que idealizou o banco de dados, ministra Cármen Lúcia. Em fevereiro daquele ano, a Segunda Turma do STF concederia habeas corpus coletivo para determinar a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar das mulheres presas, em todo o território nacional, que fossem gestantes ou mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência – medida acompanhada ou não de medida cautelar.
Saúde mental
Em 2012, outro seminário temático, desta vez sobre saúde mental no sistema prisional, revelou ao país um diagnóstico inédito feito pelo CNJ sobre a situação dos hospitais de custódia no país. O mutirão que resultou no levantamento denunciou a situação de abandono das cerca de 4 mil pessoas internadas nessas instalações, para cumprir medida de segurança, pena aplicada aos cidadãos considerados inimputáveis que cometeram crimes. Muitos desses internos tinham laudos que atestavam a possibilidade de desinternação e de transferência a residência terapêuticas.
Com a ação do Justiça Presente, a discussão alcançou outro patamar. O seminário internacional “Judiciário, sistema penal e sistema socioeducativo: questões estruturais e mudanças necessárias”, realizado na sede do CNJ nos dias 3 e 4 de março deste ano, reuniu especialistas, ativistas, acadêmicos e magistrados de vários países. O ex-ministro da Suprema Corte Argentina e atualmente juiz da Corte Interamericana de Direitos Humano, Eugenio Zaffaroni, por exemplo, tratou do conceito da punição na sociedade contemporânea. A advogada e ativista Fania Davis atua desde os anos 1960 atuou nos movimentos de direitos civis nos Estados Unidos. Veio tratar da Justiça Restaurativa, uma abordagem que aos poucos vem sendo adotada na justiça criminal brasileira. O Justiça Presente tem como meta induzir projetos de Justiça Restaurativa em 10 unidades da Federação.
Quadros especializados
As iniciativas do DMF para discutir políticas públicas e também trazer melhorias às prisões resultaram no aprimoramento da formação de dezenas de juízes brasileiros. Depois de 2013, por exemplo, todos os coordenadores do departamento foram escolhidos entre aqueles magistrados que realizaram os mutirões carcerários nos estados: Douglas de Melo Martins, Luís Geraldo Lanfredi e Maria de Fátima Alves.
Com a especialização dos quadros da justiça criminal, o CNJ e o DMF também deixam para a história do encarceramento no Brasil um legado institucional, mais especificamente na estrutura dos órgãos de justiça. Muitos juízes que participaram das ações do DMF hoje formam uma rede nacional de juízes especializados em execução penal. Muitos deles coordenam os Grupos de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Medidas Socioeducativas (GMF) de seus respectivos tribunais.
Resoluções do CNJ estabeleceram esses setores nos tribunais de Justiça em 2009 e os ampliaram para os tribunais regionais federais em 2015, quando um segundo normativo consolidou o escopo de atuação dos GMFs. Muitos de seus integrantes pertencem à geração de juízes e servidores de execução penal de todo o país formada pelos mutirões carcerários do CNJ. Mais que descentralizar as políticas públicas definidas pelo CNJ, porém, os GMFs participam do processo de elaboração dessas políticas, nos encontros nacionais dos grupos, promovidos pelo DMF.
Reconstrução da vida
O Conselho Nacional de Justiça investiu contra a cultura do encarceramento ao tentar controlar a quantidade de pessoas dentro das penitenciárias, mas também colocar a vida dessa população, tradicionalmente marginalizada pela sociedade, como foco de uma política pública. A partir de um programa iniciado em 2009, o Começar de Novo, o Poder Judiciário aos poucos vem adotando a causa de quem está ocioso na prisão ou já passou pelo sistema carcerário e precisa voltar ao convívio social, em condições de sobreviver longe do crime.
A partir de convênios com a iniciativa privada e com órgãos públicos, o CNJ conseguiu que milhares de presos que deixaram o sistema prisional sem perspectiva de subsistência tivessem acesso a emprego e/ou cursos de capacitação profissional. Para divulgar o programa nacionalmente, o CNJ fez diversas campanhas nos veículos de comunicação. Com a adesão de entidades e clubes de futebol ao programa, a mensagem sobre a necessidade de oferecer emprego para combater a criminalidade correu o país.
Um acordo do CNJ firmado em 2009 com o Clube dos 13 fez os jogadores de vários clubes entrarem em campo para jogos do campeonato brasileiro carregando uma faixa com mensagens alusivas ao programa e seu propósito. Graças a um convênio firmado com o comitê organizador da Copa do Mundo e com o Ministério do Esporte, estados e municípios que sediaram a Copa das Confederações 2013 e da Copa do Mundo de 2014, as empresas responsáveis pela construção dos estádios e pelas obras urbanas empregaram 682 presos e ex-presos selecionados pelo programa.
Em 2012, o CNJ lançou o Selo Começar de Novo, que passou a ser outorgado a empresas como reconhecimento por suas iniciativas de reinserção profissional da população carcerária. Até 2014, foram entregues a 65 empresas que comprovaram a contratação de presos e egressos.
Parcerias
Pelo formato do programa, enquanto o CNJ buscava parceiros e divulgava os benefícios de se contar com a mão de obra “prisional” ao empresariado, os tribunais de Justiça eram responsáveis por selecionar presos, a partir de uma avaliação de seu comportamento e do perfil desejado pelos empregadores. A parceria com a administração prisional dos estados e com o terceiro setor ajudou os tribunais a consolidar, ao longo do tempo, suas próprias iniciativas de capacitação e recolocação profissional de milhares de egressos, como são chamados os ex-presos.
Uma delas é a remição pela leitura. A partir das iniciativas isoladas de magistrados, o DMF formulou uma proposta e o Plenário do CNJ aprovou em 2013 uma recomendação que reconheceu a leitura e os estudos como forma de diminuir o tempo de pena, e estabeleceu parâmetros objetivos para calcular a redução. O Justiça Presente realizou no início do ano a Jornada de Leitura no Cárcere, que divulgou para o Brasil as iniciativas de leitura em todo o país. O evento online registrou uma audiência de 2,5 mil participantes no canal audiovisual do CNJ na plataforma YouTube e obteve até o fim de junho 7,8 mil visualizações.
Reformulação
Em meados da década passada, o Começar de Novo já havia cumprido sua missão de incentivar e disseminar essa política pública nacionalmente. O CNJ buscou então um novo formato para manter uma política pública para esse segmento a área. Assim foram criados os Escritórios Sociais, na gestão do ministro Ricardo Lewandowski, em 2015, como projeto-piloto em parceria com o Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES). A ideia é reunir em um só local todos os serviços de assistência social e jurídica a que um ex-preso possa ter acesso para recomeçar a vida fora da prisão e longe do crime.
Modernização
Com o agravamento da situação econômica devido à pandemia da Covid-19, as equipes dos escritórios sociais orientaram egressos a obter o auxílio emergencial. Estima-se que 300 mil presos deixem os presídios brasileiros anualmente. Por isso, o Justiça Presente tem como meta inaugurar 15 escritórios sociais pelo Brasil – até março oito haviam sido inaugurados. O programa viabilizou a compra de equipamentos para os escritórios sociais no Piauí, Mato Grosso, Bahia, Paraíba, Acre, Amapá, Sergipe e Alagoas. Um aplicativo para celular está sendo desenvolvida em parceria com a Universidade de Brasília (UnB). O Escritório Social Virtual pretende aproximar os egressos dos serviços públicos que sejam úteis para voltar à vida social, com informações de contato.
Visibilidade à internação de jovens
Enquanto os mutirões carcerários atraíram visibilidade até então inédita para a vida dos presos do país, os adolescentes que cometeram atos infracionais também passaram a ser monitorados pelo CNJ – antes mesmo do estabelecimento formal do DMF. Em maio de 2009, o Plenário do CNJ aprovou a criação de dois cadastros nacionais para mapear esses jovens, dentro e fora das instituições de internação. O Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito com a Lei (CNACL) e o Cadastro Nacional de Inspeções em Unidade de Internação e Semiliberdade (CNIUS) fornecem dados sobre o perfil de um segmento da população historicamente vulnerável que, nos últimos anos, se tornou mão de obra valiosa para a criminalidade. As duas bases de dados passam atualmente por um processo de aprimoramento técnico.
Em 2010, o DMF lançava o Projeto Medida Justa (nome posteriormente alterado para Justiça ao Jovem) para fazer um diagnóstico nacional da rede socioeducativa onde esses adolescentes cumpriam medidas de internação. Ao rememorar seu trabalho no DMF, o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) Reinaldo Cintra Torres de Carvalho lembra de se deparar com a ausência total de informações sobre o sistema socioeducativo brasileiro. “Procuramos dados sobre a custódia dos adolescentes no país e não encontramos. Nem o Ministério da Justiça nem a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SDH), que era a responsável pela área, tinha números precisos, localização das unidades, tipo de tratamento, conservação, ou seja, o sistema socioeducativo com números insuficientes para que pudéssemos começar um trabalho de melhoria”, disse.
Essa carência de informações levou o DMF a assumir a tarefa de sair a campo para colher esses dados sobre o quadro nacional da socioeducação in loco. O DMF convidou para a missão magistrados da justiça juvenil de diferentes tribunais de Justiça. A lógica era semelhante à do mutirão carcerário: um juiz era escalado para visitar as unidades de internação de outro estado. Isto assegurava a autonomia necessária em relação às autoridades estaduais para elaborar o diagnóstico mais completo possível.
Quando concluíam as visitas em um estado, os juízes recebiam o reforço dos magistrados do DMF e, em comitiva, iam ao encontro dos chefes do Poder Executivo e o Poder Judiciário de cada unidade da Federação. Na reunião, apontava-se o que havia sido detectado de problemas, deficiências e necessidades para que fossem tomadas as medidas cabíveis. “A maioria dos tribunais de Justiça dos estados, acredito, não tinha ideia do que acontecia no sistema socioeducativo de seu estado”, disse o desembargador Torres de Carvalho.
O outro juiz nomeado para cuidar no DMF pela chamada área infracional, Daniel Issler, também do TJSP, ressalta hoje o ineditismo dos levantamentos produzidos pelo CNJ na área. “Havia pouco conhecimento sobre esse sistema, (operado) sob a égide apenas do Estatuto da Criança e do Adolescente, que é considerada uma legislação moderna, mas ainda não implantada no Brasil”, afirmou. Em dois anos, magistrados indicados pelo DMF visitaram as unidades de internação em todas as unidades da Federação. Os relatórios do programa sobre os sistemas socioeducativos estaduais servem até hoje como referência para quem busca conhecer o sistema socioeducativo brasileiro.
O resultado dos relatórios foi consolidado em uma publicação de abrangência nacional pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ/CNJ). O “Panorama Nacional – a execução das medidas socioeducativas de internação”, de 2012, representou uma radiografia nunca antes vista da rede de instituições onde aqueles jovens com pelo menos 12 anos de idade condenados por reincidências (ou por terem cometido os atos infracionais mais graves) cumprem a medida mais parecida com a prisão dos adultos, das seis previstas no ECA para quem comete ato infracional.
Nas visitas do Programa Justiça ao Jovem, os magistrados do CNJ encontraram 17.502 internos estabelecimentos de execução de medida socioeducativa espalhados pelo país, ao final de 2019. A estimativa era de que existiam 24 mil jovens cumprindo alguma medida de internação no país. Equivale dizer que o número de jovens sob custódia do estado cresceu 41% nos últimos oito anos. A atualização do quadro nacional da aplicação das medidas socioeducativas hoje cabe ao Justiça Presente, programa do CNJ em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) voltado para o universo das prisões e das unidades de internação.
Justiça Presente
Ao final de sua primeira década de existência, o DMF teve sua atuação redimensionada. O que era realizado por servidores do CNJ “quase artesanalmente”, segundo o juiz coordenador do Departamento, Luís Geraldo Lanfredi, agora conta com um volume inédito de investimento, além do aporte da expertise de uma equipe de especialistas na área prisional. Desde janeiro de 2019, o DMF pôde ampliar o alcance das melhores políticas públicas executadas desde a criação do departamento, em 2009. Recursos oriundos de uma parceria institucional entre CNJ, PNUD e o Depen vão permitir ao CNJ abordar o sistema socioeducativo e o sistema de execução penal, em todos os momentos do chamado ciclo penal: a porta de entrada, o cumprimento da pena, e a vida pós-cárcere dos egressos.
Em relação ao sistema socioeducativo, o programa publicou em parceria com o Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ/CNJ) uma pesquisa inédita que mediu a repetição de atos infracionais que levam jovens de volta a unidades de internação, “Reentradas e reiterações infracionais: Um olhar sobre os sistemas socioeducativo e prisional brasileiros”. A pandemia do novo coronavírus obrigou o programa a suspender cronogramas de ações. Mesmo assim, a equipe de especialistas ajudou o CNJ a formular um protocolo de recomendações para os tribunais e governos estaduais observarem na prevenção e manejo dos infectados nas casas de internação. Também foram emitidas orientações sobre a realização das audiências de apresentação, com orientações para as varas de infância e juventude que lidam com os adolescentes apreendidos nesse período excepcional de disseminação da doença no país.
“Desde a edição da Recomendação 62, o CNJ vem fazendo um monitoramento do enfrentamento da pandemia no sistema socioeducativo, de modo a resguardar a dignidade dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa. Deve-se, ainda, ressaltar que o artigo 93, inciso IX, da Constituição é hígido, cabendo ao juiz decidir individualmente e de forma fundamentada sobre cada processo, ou seja, as normativas não são uma grande decisão geral”, explica o juiz auxiliar do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF/CNJ), Antonio Tavares.
A porta de entrada do sistema prisional deixou de ser a prisão em flagrante e passou a ser a audiência de custódia desde a implantação do projeto, em 2015. Depois de atingir a marca de mais de 700 mil audiências de custódia realizadas, a iniciativa do CNJ busca aperfeiçoamento das suas práticas. A equipe do Justiça Presente tem capacitado os profissionais que atendem os presos entre a prisão e o desfecho da audiência de custódia, como as equipes psicossociais. Os últimos estados abrangidos antes da pandemia foram Roraima, Sergipe e Paraíba.
“O programa é um divisor de águas na metodologia de atuação na história do Departamento, que ganhou na amplitude e no alcance das suas ações, o sucesso do Justiça Presente decorreu não só da disponibilidade de condições materiais, mas sobretudo da maturidade de projetos que foram executados nas gestões anteriores. A consolidação dessa trajetória permitiu que se vislumbrasse um modo de tratar do ciclo penal de maneira integral e sistemática”, afirmou o juiz auxiliar da Presidência e integrante do DMF, Fernando Pessôa da Silveira Mello.
A execução penal era, na época da criação do DMF, uma atividade basicamente manual com manuseio de pastas, caixas de papelão, calhamaços de papel e muita poeira. Passados 10 anos, os tribunais modernizaram por iniciativa própria a tramitação desses processos, por meio dos quais os juízes acompanham o percurso dos condenados no cumprimento das penas sentenciadas. Em 2016, o CNJ iniciou o projeto-piloto que hoje se transformou em uma plataforma única, que vale para todo o país, para cadastrar todos os presos do sistema carcerário brasileiro: o Sistema de Execução Eletrônica Unificado.
Mais conhecido pela sigla SEEU, o sistema já chegou a quase todos os tribunais brasileiros. Com o auxílio da tecnologia, o CNJ atualmente acelera o processo de migração dos cadastros de presos mantidos nos sistemas antigos dos tribunais para o SEEU. Além disso, no primeiro trimestre de 2020, capacitou 6,5 mil pessoas que serão responsáveis pela operação do sistema.
Segundo o juiz auxiliar do DMF/CNJ Carlos Gustavo Direito, o trabalho colaborativo é um dos maiores trunfos do SEEU, afirmou o magistrado. Antes, os 32 tribunais que lidam diretamente com a execução penal operavam sete diferentes sistemas informatizados que automatizavam, cada um a sua maneira, um processo de acompanhamento de um processo que é igual de norte a sul do país. “Numa iniciativa inédita, todo os tribunais de justiça e federais foram envolvidos na formulação e execução de um conjunto de propostas com a ambição de tratar com coerência os problemas que impactam diretamente o funcionamento do sistema de justiça criminal e a performance dos sistemas prisional e de medidas socioeducativas”, afirmou o magistrado.
Desde janeiro, o Justiça Presente também realiza uma pesquisa em 10 estados para entender melhor a percepção que os profissionais de segurança pública (polícias) têm sobre os procedimentos e os fluxos entre o sistema de segurança e o sistema de justiça. Para obter informações biométricas da população carcerária brasileira, o programa já adquiriu 4,2 mil kits de coleta para distribuir aos estados.
“Os primeiros resultados dessa mobilização já estão a demonstrar o potencial irradiador de políticas judiciárias de âmbito nacional e são, assim, fruto da colaboração de atores de todo o Poder Judiciário, dos governos Federal e estaduais e de organismos internacionais parceiros. São entregas que demonstram a coerência em se tratar de forma sistêmica os problemas que fizeram o sistema prisional brasileiro ser considerado ‘em estado de coisas inconstitucional’ pelo Supremo Tribunal Federal”, afirmou o juiz coordenador do DMF, Luís Geraldo Lanfredi.
Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias