O encarceramento feminino aumentou 256% nos últimos 12 anos, segundo o Sistema Nacional de Informações Penitenciárias. O resultado é o déficit de aproximadamente 14 mil vagas nos presídios femininos. Mesmo assim, a mulher detenta representa apenas 7% da população carcerária, de um total de 549 mil. São crimes menos violentos, sendo 80% deles relacionados ao tráfico de drogas.
“Apesar de representar um universo bem menor entre a população carcerária, as necessidades específicas das mulheres detentas seguem ignoradas”, observa Rosângela Santa Rita, coordenadora do Projeto Mulheres, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça. O projeto, que prevê um conjunto de ações voltadas às mulheres em situação de privação de liberdade e egressas do sistema cercerário, conta com a contribuição de outros ministérios e órgãos, como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e deve ser concluído ainda neste semestre.
Entre as propostas em discussão para a Política Nacional de Atenção Integral às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Carcerário, estão a adoção de penas alternativas e de medidas cautelares, sempre que possível e a revisão da Lei de Drogas. “Estamos no momento ideal para discutirmos várias questões: 80% das mulheres estão atrás das grades por causa do tráfico de drogas. É preciso distinguirmos usuárias e dependentes de drogas das chefes do tráfico e tratá-las de forma diferente. É um assunto polêmico e precisa ser tratado com cautela, mas o momento é agora”, afirmou Rosângela, em entrevista à Agência CNJ de Notícias.
Assim como nas unidades prisionais masculinas, as prisões femininas também estão superlotadas e em péssimas condições?
Sim. O Brasil possui um déficit de 220 mil vagas para uma população carcerária hoje em torno de 550 mil. No caso das mulheres, são 36 mil e um déficit de aproximadamente 14 mil vagas. E a histórica discriminação de gênero está desde a estrutura física até os serviços penais. As regras prisionais não foram pensadas pelo viés da mulher. Dou um exemplo: o kit de higiene, que em muitos locais não é distribuído às mulheres. Especialistas sérios já presenciaram a utilização de miolo de pão para conter o sangue das detentas no período menstrual. Estamos em pleno século XXI, em um estado democrático, e essas mulheres estão sob responsabilidade do Estado. Os secretários estaduais precisam entender e pensar que o encarceramento feminino é especial e precisa ser diferenciado. A lógica que se mantém é a do paternalismo. O que sobrar é da mulher.
O que a Política Nacional traz de novidade para os estados e as apenadas?
A intenção é fortalecer as políticas dos estados que possam interagir com o sistema prisional. A Política Nacional tem esse caráter de propostas integradas com o viés da questão de gênero. As propostas estão distribuídas em várias áreas. As prisões femininas são adaptações de penitenciárias masculinas; essa é uma questão que estamos estudando para que os próximos projetos que o Depen apoiar tenham esse cuidado. Por exemplo, na área de construção, garantir privacidade do banheiro feminino, separar o espaço do vaso sanitário do chuveiro. Outro exemplo são as visitas. O Estado determina direito a duas visitas. Mas se a mulher tiver mais filhos eles não entram. Por que? Porque não há uma política de gênero. São questões que precisam ser flexibilizadas. Claro, respeitando a autonomia dos estados, e cada estado tem sua regra prisional, mas levando em conta as especificidades desse gênero.
Como o quê, por exemplo?
A primeira parte da Política tem alguns acordos e pactuações feitas em 2012, no âmbito dos estados e dos ministérios. Dividimos por áreas para que elas sejam levadas para os órgãos específicos. A ideia é que os projetos que o Depen apoiar respeitem essas questões. Há uma proposta na área de maternidade, por exemplo.
Construção de creches?
Poucas unidades hoje têm espaço para construção de creches ou berçários. O que há hoje são lugares separados e nada a ver com o que se preconiza nessa área. Há estado que não tem creche e, quando tem, é entre aspas. O que existe em relação a isso na proposta? Desde a identificação da gestante, o que é preciso ter. Os cuidados com o pré-natal, com o parto e pós-parto. Outro ponto diz respeito a essa criança. Quanto tempo ela pode ficar? Hoje, 80%, em nível nacional, ficam com os filhos até 6 meses.
É pouco?
Sim, essa é a idade mínima, mas o que vem acontecendo é que os estados estão entendendo esse limite da idade mínima como um limite máximo. E isso vulnerabiliza ainda mais a situação da mãe e da criança. É direito da criança ficar, no mínimo, seis meses e, no máximo, sete anos com a mãe. A gente não defende sete anos. O que defendemos, e o que está na Resolução n. 4/2009 do CNPCP (Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do MJ), é que a separação seja trabalhada durante um ano e meio e a gradativa separação. Infelizmente, o que acontece hoje é uma separação abrupta. E, muitas vezes, as crianças estão indo para abrigo e estão sendo adotadas. Elas estão perdendo seus filhos.
Como isso ficará no Plano Nacional?
Defendemos que mãe e filho fiquem juntos por dois anos. Mais que isso é ruim, porque a criança passa a ter vínculo com a cadeia e é aí também que se inicia a fase de descobertas, do desenvolvimento cognitivo. Mas é preciso haver um trabalho, um período de transição para ela trabalhar essa ruptura. Nessa política precisamos garantir uma padronização e garantir alguns direitos que estão sendo vulnerabilizados. Tem lugares em que, até hoje, as mulheres vão para o parto algemadas, apesar de Resolução do CNPCP proibir isso, assim como as chamadas Regras de Bangkok da ONU (instituídas em 2010, são regras de tratamento para mulheres presas. O Brasil participou da elaboração do texto, que veda o uso de qualquer meio coercitivo antes, durante ou logo após o parto). Cada ponto está sendo trabalhado. E cada ponto tem pactuações, inclusive com o CNJ. Estamos conversando com vocês no sentido da elaboração de resoluções – elas têm muito peso para os juízes – no sentido da aplicação de mais cautelares. Na verdade, a questão da mulher tem nuances muito específicas. Elas praticam crimes menos violentos: 80% são crimes relacionados ao tráfico de drogas. Poucas gerenciam. E devido à Lei da Droga está aumentando muito o encarceramento feminino. É uma questão a ser discutida de forma mais ampla.
Você acha que a legislação sobre droga deveria tratar homens e mulheres diferentemente?
Eu acho que, no caso das mulheres, sim. É preciso fazer uma nova discussão. Estamos no momento ideal para discutirmos várias questões. Oitenta por cento das mulheres estão atrás das grades por causa do tráfico de drogas. É preciso distinguirmos usuárias e dependentes de drogas das chefes do tráfico e tratá-las de forma diferente. É um assunto polêmico e deve ser tratado com cautela, mas o momento é agora. A questão da maternidade; do vínculo familiar. Quando a mulher vai presa, os filhos ficam com as avós ou vão para instituição. Os homens, pais dessas crianças, dificilmente cuidam desses filhos. Eles são mandados para abrigos; e já houve criança adotada de maneira arbitrária. Tem um documentário, intitulado Mães do Cárcere, feito pela Pastoral Carcerária, que aborda isso. Precisamos avançar nas medidas cautelares.
Entre estar com a mãe na prisão ou em um abrigo, é melhor que a criança fique com a mãe?
As internas relatam muito isso. ‘Quando estava na rua e usava droga eu dava meus filhos’. Quando ela vai presa, passa a ter outra relação com a criança. Essa experiência gera outra significação da maternidade. Muitas se recuperam a partir dessa experiência. Mas é uma relação complexa. Como historicamente vivemos em uma sociedade patriarcal, a presa se sente falida como mãe, culpada.
Alguma penitenciária está no caminho certo?
Sim. Visitamos uma no Paraná que é um exemplo interessante. Lá elas ficam com as crianças até seis anos. O espaço é bem interessante, tem parquinho, área verde, brinquedoteca e até sala de vídeo. No entanto, não há ainda atividades pedagógicas para essas crianças. Quando elas chegam a determinada idade, vão para creche externa e voltam à tarde. Se formos trabalhar com presas e crianças, temos de pensar no que fazer com elas. Criança não pode ficar presa. Na Política Nacional, estamos prevendo que elas tenham horário diferenciado de banho de sol, por exemplo, assim como defendemos a convivência comunitária. Não queremos que as crianças fiquem 100% na instituição. Elas precisam sair e ter essa convivência para seu melhor desenvolvimento.
E na área de reinserção profissional, as mulheres estão melhores que os homens?
Há muita coisa por fazer. Não existe preparação para esse pessoal entrar no mercado de trabalho, mas deveria haver. Também nessa área, falta a política de gênero. De uns 10 anos para cá é que viemos a estudar esse grupo. Apenas 10% das mulheres apenadas estudam. Faltam práticas voltadas para adequar o estudo à realidade delas, e a possibilidade de remição de pena com ele é luta histórica e avanço. Na parte laboral, é preciso haver uma pesquisa de mercado para saber a que tipo de demanda ela pode atender quando voltar para a sociedade.
Regina Bandeira
Agência CNJ de Notícias