Andréa Pachá*
É preciso entender a crescente inserção feminina nos mais diversos aspectos da vida social como um elemento fundamental do avanço da cidadania. Compreendida assim a presença ativa da mulher na sociedade, a violência contra a mulher, principalmente a violência doméstica, assume características de aberração social e de fenômeno que, ao ferir a cidadania, exige das instituições respostas à altura. A violência contra a mulher é a múmia que resiste ao dia e se conserva na escuridão.
Foi longo o caminho para a conquista do espaço hoje ocupado pelas mulheres. Há pouco mais de setenta anos nem sequer havia participação feminina no processo eleitoral. Sem voto e sem voz, até mesmo no campo mais pródigo e generoso das artes e da cultura, a presença feminina era tímida e restrita a umas poucas exceções que confirmavam a regra do confinamento a um segundo plano social. Apenas em 1977, Rachel de Queiroz foi admitida como primeira integrante da Academia Brasileira de Letras.
Vista pelo retrovisor hoje, a luta pelo reconhecimento da mulher como agente social pleno parece ter se esgotado na ampliação da presença feminina no mercado de trabalho. Em diversas profissões, de fato, as mulheres já são maioria – ainda que a remuneração que recebam, generalizadamente inferior à dos homens, mantenha acesa a luz de advertência quanto à necessidade de prosseguir no combate pela igualdade.
Na própria magistratura há um processo crescente de feminilização. Já são duas ministras na Suprema Corte do País e as mulheres estão em praticamente todos os tribunais e nas jurisdições de primeiro grau. Muitas trazendo inovações importantíssimas para a prestação de serviços à sociedade. Também na política, embora em proporção ainda relativamente pequena, as mulheres têm ocupado mais e mais importantes espaços, desempenhando com eficiência as tarefas a que se propuseram.
Mas, a despeito de tudo isso, a violência de gênero se mantém. Ela não discrimina classe social, grau de escolaridade, renda ou idade. É uma violência silenciosa, que afronta a dignidade individual e corrói os valores e a estrutura das famílias.
Superar esse tumor social, que envergonha a cidadania, depende de transformações culturais e sociais de amplo espectro. Mas é evidente que nenhum esforço no sentido de eliminar a violência contra a mulher chegará a bom termo sem o suporte e a atuação firme do Poder Judiciário.
A Lei Maria da Penha, que tipifica e pune os atos de violência contra a mulher, promulgada em 2006, significou uma profunda alteração na forma com que o Judiciário vinha enfrentando a matéria. Após marchas e contra marchas, finalmente com a Lei 11.340, uma série de direitos, antes esparsos, que tutelam especificamente o gênero feminino, foram afirmados. Até então, a violência contra a mulher e a afirmação constitucional da igualdade de gênero era assimilada como parte integrante dos demais direitos e garantias previstos na Constituição, sem qualquer especificidade de atenção pontual por parte do legislador. Deve-se, por isso mesmo, entender a Lei Maria da Penha como um dispositivo legal afirmativo dos direitos das mulheres. Sua aplicação é de grande importância no avanço da cidadania.
Acima de todas as determinações legislativas, o texto vale pelo seu simbolismo. Sua existência colabora para alterar a percepção cultural e social da violência de gênero. Evidentemente que não se muda a cultura pela promulgação de uma lei, mas ela tem importância fundamental nesse processo. Em alguns momentos, a edição de um texto legal funciona como aparato didático.
No Judiciário, a lei foi recebida com sede. Em alguns estados, bastou sua promulgação para que fossem imediatamente instalados os juizados especiais dedicados, exclusivamente, ao julgamento dos atos de violência doméstica contra a mulher. Rapidamente, os tribunais de todo o país começaram a trabalhar para tornar a lei efetiva. Dando um passo concreto na consolidação desse processo, há um ano, em março de 2007, o Conselho Nacional de Justiça aprovou recomendação aos tribunais para a instalação dos juizados.
O CNJ assumiu a implementação da Lei como prioridade. Hoje todos os estados estão mobilizados na criação, ampliação e consolidação de unidades jurisdicionais para tratar, especificamente, da violência de gênero. Nos estados onde o serviço ainda não é oferecido, já há movimentação para que isso ocorra, com o envio de projetos de lei para as assembléias legislativas e sua previsão nos orçamentos.
Ainda é pouco e por isso é fundamental continuar a construção dessa rede. Para isso, o Poder Judiciário conta com a parceria do Executivo, por meio da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e do Ministério da Justiça. Em conjunto, promoveram uma jornada de trabalho, nesta segunda-feira, dia 10, com a presença da presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, ministra Ellen Gracie, e com magistrados e magistradas de todo o País, buscando meios de capilarizar a presença dos juizados, para que eles estejam acessíveis a cada mulher que sofre uma agressão.
Juízes e juízas desempenham papel fundamental nesse processo. Eles são os protagonistas da efetivação da lei. Entendem que a Lei Maria da Penha é boa não apenas para as mulheres. É boa para toda a sociedade, porque gera igualdade, condição fundamental para o avanço da democracia e da cidadania. Enquanto prevalecer o desequilíbrio de gênero, não teremos justiça social.
________________________________________________________________________________
(*) Andréa Pachá é juíza no Rio de Janeiro e integrante do Conselho Nacional de Justiça
Artigo publicado em 13 de março de 2008