A cultura da tortura instalou-se no Brasil como prática histórica, mas esse cenário pode ser substancialmente alterado a partir da sensibilização e do engajamento de magistrados, especialmente quando unidos com atores preocupados com a mesma temática. Esse foi o principal ponto discutido nesta quarta-feira (22/6), primeiro dia de debates do 2º Seminário sobre Tortura e Violência no Sistema Prisional e no Sistema de Cumprimento de Medidas Socioeducativas – Atuação do Poder Judiciário no Enfrentamento à Tortura. O evento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) voltado para magistrados e especialistas vai até sexta-feira (24/6).
A primazia da dignidade humana sobre qualquer norma foi defendida pela secretária especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), Flávia Piovesan, durante a conferência magna de abertura. Ela destacou que, embora o enfrentamento à tortura tenha ganhado novo fôlego com as audiências de custódia – que classificou como “um dos antídotos mais essenciais de prevenção à tortura” –, essa obrigação já vinha sendo assumida pelo Brasil há décadas no cenário internacional. “Eu fico emocionada de ver a data da resolução [CNJ 213/2015] e que hoje nós estamos aqui reunidos para falar sobre o impacto disso na vida de tantas pessoas. É o esforço heroico de uma política institucional bancada com coragem e ousadia pelo ministro Ricardo Lewandowski e com empenho e engajamento de todos vocês, juízes”, disse.
Embora reconheça as dificuldades de enfrentamento à tortura, a titular da SDH disse que é preciso vencer os desafios com criatividade e com a união de diferentes atores do Estado. Entre as soluções propostas, estão a vinculação do sistema penitenciário à estrutura que respeite os direitos humanos, maior proteção a vítimas e testemunhas, maior participação dos conselhos da comunidade, aprimoramento de técnicas da polícia, treinamento de médicos para identificação de tortura, independência da perícia em relação à segurança pública, independência das ouvidorias de polícia e formação de grupos específicos no Poder Judiciário e no Ministério Público para investigar e processar o crime de tortura.
A importância do diálogo institucional também foi lembrada pelo presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Ricardo Lewandowski. “Queremos uma articulação maior e mais eficiente entre os diversos atores estatais e a sociedade civil como estratégia para aperfeiçoar os protocolos de atuação e as diretrizes relacionadas com o combate e a prevenção à tortura”, disse. Para o ministro, as audiências de custódia, nas quais o preso em flagrante é apresentado à autoridade judicial no prazo de 24 horas, deram ao Judiciário maior protagonismo na defesa dos direitos humanos.
A visão é compartilhada pelo coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) do CNJ, juiz Luís Lanfredi. “Somos os garantidores das liberdades e temos a obrigação de apurar práticas de tortura. Devemos encarar o assunto de frente, sem escamoteamentos ou evasivas”, disse.
Protocolo – A regulamentação das audiências de custódia apresentou um protocolo exclusivo para o enfrentamento à tortura. Segundo especialistas, embora o texto esteja alinhado a normas internacionais e domésticas, a aplicação desse método ainda é um desafio. Depois de classificar a metodologia do CNJ como a “mais importante reforma recente do sistema de justiça criminal”, o coordenador-geral de Alternativas Penais do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), Victor Pimenta, afirmou que os resultados no combate à tortura já são expressivos para o conhecimento de dados e estatísticas – levantamento mais recente sobre relatos de violência nas audiências de custódia registrou mais de 5 mil casos até junho de 2016, ou 5,32% do total de audiências realizadas.
“As audiências de custódia por si só, ainda que a gente não faça tudo que devia, já contribuem para o combate à tortura. Se seguirmos o protocolo do CNJ, o potencial de transformação das práticas pelos agentes do Estado é enorme”, observou Pimenta. Entre os quatro pontos que considerou essenciais para que o Judiciário contribua com combate à tortura, estão o fim da naturalização da violência no ato da prisão, o questionamento sobre tortura como regra nas audiências com presos, a eliminação da presença de policiais durante esse questionamento e o pressuposto de que as pessoas presas já estão em situação de vulnerabilidade e devem se sentir seguras quando ouvidas.
Sugestões para que o Judiciário enfrente casos de tortura também foram citadas pelo integrante do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Rafael Barreto Souza, como visitas periódicas aos centros de detenção, planos de desencarceramento e transparência no acesso à informação. “Não há possibilidade de aceitação da tortura. Entre os bens jurídicos protegidos, não está só a integridade da pessoa, mas o adequado funcionamento do próprio sistema de Justiça”, disse.
Embora o combate à tortura também envolva a responsabilização e reparação da vítima, a delegada brasileira na Associação para a Prevenção da Tortura, Sylvia Dias, deu foco especial para a etapa da prevenção e disse que ela será mais efetiva na medida em que os atores envolvidos trabalhem conjuntamente para a redução de riscos, uma vez que a tortura é considerada um crime de oportunidade. “A prevenção à tortura não se faz sozinho. O juiz é protagonista, mas isso se faz com parcerias e o Judiciário tem que abrir suas portas”, defendeu. Entre os fatores de risco, ela listou a superlotação, a dificuldade na abordagem policial, o uso excessivo da prisão provisória, a impunidade e a falta de transparência.
Em um cenário de maior impacto da magistratura nesse contexto, ela destacou a realização das audiências de custódia, a necessidade de recusa de provas nos casos de suspeita de obtenção via tortura, a redução da prisão preventiva e a opção por alternativas à prisão quando já existe sentença. “Tudo isso passa pelo princípio da não tolerância. O juiz tem o dever de estar alerta a qualquer tipo de sinal de que houve violação de direitos daquela pessoa, isso tem que estar presente em todo o momento”, disse.
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Deborah Zampier
Agência CNJ de Notícias