A imposição de multas a empresas concessionárias de serviços públicos, responsáveis por grande volume de processos judiciais, poderia levar as empresas a resolverem administrativamente os conflitos com os consumidores. Multas e metas poderiam ser estabelecidas pelas agências reguladoras para evitar que essas empresas continuem encabeçando a lista dos 100 maiores litigantes, divulgada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Em entrevista à Agência CNJ de Notícias, o conselheiro José Guilherme Vasi Werner conta que as negociações nesse sentido estão bem avançadas com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Ele acredita também no efeito do marketing negativo sobre os grandes litigantes: a divulgação dos nomes e dos principais motivos de demandas na Justiça vai ajudar as empresas a mudarem suas políticas.
Mas ele alerta que, além dessas, diversas outras ações são necessárias para reduzir a quantidade de processos na Justiça, que recebe por ano 26 milhões de novos processos.
Veja os principais trechos da entrevista:
O Relatório Justiça em Números, do CNJ, mostrou que 90 milhões de processos tramitaram na Justiça em 2011, sendo 26 milhões de processos novos. O que fazer para reduzir esse grande volume de processos? É natural um número tão elevado?
Eu não diria que é natural. Longe disso! Mas também não diria que é algo inesperado. O que chega em juízo aqui no Brasil, comparado com o que chega efetivamente para julgamento em outros países, é um número muito grande. Nos Estados Unidos da América, cujo sistema poderia ser comparado com o nosso, porque têm tribunais federais, tribunais estaduais, há um volume de ações parecido com o nosso. Só que grande parte disso é resolvida antes de chegar a julgamento. Essa é a grande diferença. Eles conseguem resolver muita coisa antes de chegar ao sistema oficial, e aqui não.
Nos Estados Unidos, então, parte dos conflitos é resolvida antes de se transformar em processo judicial?
Grande parte é resolvida por acordo entre as partes, por advogados, por mediação. Os casos são contabilizados, mas não chegam a entrar na rotina de julgamento dos processos, enquanto no Brasil tudo depende de julgamento.
O que fazer para mudar essa situação?
O CNJ vem agindo de maneira estratégica para enfrentar o número cada vez maior de demandas. Primeiro, com a publicação do Relatório Justiça em Números verificamos quantos processos temos, onde estão esses processos, quanto há em cada tribunal. Identificamos que temos esse número avassalador: 26 milhões de processos novos por ano. Mas esse relatório não identifica o que são esses processos. A publicação Os 100 Maiores Litigantes foi um passo adiante nessa identificação e, já na primeira edição, mostrou que, dos quase 100 milhões de processos que temos em tramitação, 38% são do Governo, 38% são dos bancos, e o resto é de empresas de telefonia e concessionárias de serviços públicos. Então, 90% desses processos são de 10 ou 15 entidades apenas. O problema principal está aí.
O CNJ vem tomando iniciativas em várias frentes, como o incentivo à conciliação e à mediação, a tentativa de convencer os órgãos governamentais, principalmente as agências reguladoras, a estipular penalidades, multas, metas de redução das demandas para as empresas, estímulos à gestão dos processos, identificação dos maiores litigantes, incentivo ao trabalho de juízes leigos nos juizados especiais. Tudo isso junto pode contribuir para reduzir ou, pelo menos, para retirar da atribuição do juiz o julgamento e a execução de grande parte desses processos.
Não deveria ser obrigação do advogado procurar solução antes de entrar com ação judicial?
Nós não temos essa cultura nem a cultura de reunião dos advogados com o juiz. É comum os advogados virem despachar cada um por si com o juiz, enquanto em outros sistemas as audiências são sempre com os advogados de ambas as partes. É um momento em que dá para resolver muita coisa. Aqui não há incentivo para que se faça isso.
Pode ser que os próprios advogados tenham maior interesse em levar o processo para a Justiça para cobrar mais do cliente?
Não se pode generalizar, mas muitas vezes o advogado cobra por ato ou peça processual que ele elabora. Isso pode prejudicar muito os esforços para resolver o processo logo de início. Não existe a cultura de os advogados, por exemplo, de, antes de propor uma ação, conversarem com os advogados da outra parte.
De que forma a identificação dos grandes litigantes pode ajudar na redução dos processos?
Com o levantamento dos grandes litigantes o Judiciário pôde identificar que a maior parte dos processos em tramitação é de responsabilidade de poucas pessoas ou entidades, geralmente do governo, dos bancos ou de concessionárias de serviço público. A prática política negocial dessas empresas é de não resolver o problema. Preferem esperar o ingresso em juízo para aí, sim, buscar a solução do problema somente para o caso específico, sem modificar o procedimento negocial, empresarial.
Elas ganham em cima dos que não reclamam?
Sim. Só quando houver aplicação de multas administrativas pelas agências reguladoras é que as empresas vão passar a observar seus deveres para com os consumidores, porque o desrespeito custará caro. Ou, então, quando a sociedade perceber que empresas com grande número de ações na Justiça não devem estar prestando um bom serviço. Quando isso começar a custar caro, quando o marketing negativo começar a pesar para essas empresas, elas vão mudar de postura. O CNJ contribui para esse marketing negativo com as listas de grandes litigantes. Vamos identificar as causas dessas demandas e divulgar os principais abusos dessas empresas e entidades, como alguns tribunais já fazem. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro elabora mensalmente a lista dos Top 30, isto é, os 30 maiores demandados nos juizados especiais cíveis. Isso fez que muitas das empresas ali listadas começassem a procurar o tribunal para resolver os problemas. Começou a ser uma publicidade negativa. Queremos agora dar um passo à frente com a identificação das causas dos processos dessas empresas e entidades.
O CNJ não poderia levar a discussão às agências reguladoras?
É algo que começamos a fazer. Estamos por assinar um convênio com a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), primeiro para trocar informações entre os bancos de dados da Anatel, com reclamações dos consumidores, e os dos tribunais. Nossa ideia é fazer um projeto-piloto, com os casos de telefonia, para identificar os motivos pelos quais os consumidores reclamam.
Esse trabalho vai começar agora com a Anatel?
Isso. A nossa ideia é começar aos poucos. Já estendemos o diálogo com a Anatel para a Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor (Senacom), que também tem um banco de dados que se chama Cadastro Nacional de Reclamações Fundamentadas, com dados dos Procons. Nossa ideia é integrar todas as informações para que possamos identificar com precisão os problemas. Qual o problema das telefônicas? Digamos que seja cobrança indevida na conta telefônica. Por que está havendo cobrança indevida? Vamos averiguar. A Anatel pode, por exemplo, estabelecer que as empresas resolvam o problema administrativamente, sob pena de multa.
O volume de processos dos grandes litigantes não poderia ser resolvido com ações coletivas?
Em vez de cada consumidor ingressar com uma ação, a associação de consumidores ou o Ministério Público ingressaria com uma única ação para resolver isso. Mas o nosso regime de ação coletiva é bom até certo ponto. Na execução ele mostra os mesmos problemas das ações individuais. Se uma ação coletiva pede a restituição de valores, cada pessoa tem um valor diferente, que tem de ser definido individualmente. A Justiça terá de examinar quanto ela tinha, e aí os problemas voltam. É um número imenso de execuções por conta dessa ação coletiva.
Com a identificação dos motivos das ações, o que poderia ser feito?
Vai ser possível chamar as empresas e as agências reguladoras, que são muito omissas, em geral. Se conseguirmos que as agências reguladoras imponham obrigações aos regulados, evita-se uma proliferação de ações no Judiciário.
Tanto as agências quanto o Banco Central têm muito poder.
Mas não usam. Veja como foi bem recebida aquela iniciativa da Anatel no meio do ano passado de aplicar uma multa às empresas de telefonia celular e proibir determinada empresa de vender por um período. Repercutiu muito positivamente na população, porque todo mundo via que a empresa não vinha cumprindo o que prometia.
Com essas iniciativas em relação aos grandes litigantes, será possível desafogar a Justiça?
O problema é reduzir a taxa de congestionamento. Temos uma taxa de congestionamento médio de 70%. Reduzindo-se a taxa de congestionamento mostramos que a Justiça está desafogando, conseguindo resolver os processos que entram no ano em um prazo razoável. Para reduzir a taxa de congestionamento, todas essas medidas têm de ser aplicadas.
Se a Justiça fosse ágil, será que a litigância continuaria alta?
Pode ser que assim não fosse mais interessante jogar com o tempo do processo. Os juizados especiais de forma geral já impediram isso, e as empresas mudaram a relação com o público consumidor e viram que, se não resolverem, serão condenadas, e rápido. Elas mudaram a postura. Essa é a estratégia. O CNJ tem pensado estrategicamente desde o começo e está indo em passos cautelosos. Primeiro com os números, depois detalhando esses números, quem são os responsáveis pelos processos. O próximo passo é identificar as causas desses processos, principalmente dos grandes litigantes para que possamos trabalhar com esses setores, o bancário, o governamental, o de telefonia.
Gilson Luiz Euzébio
Agência CNJ de Notícias