Presença constante nos estabelecimentos penais de Goiás, o Ministério Público (MP), a Defensoria Pública e a Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil não apenas conheciam as fragilidades do sistema carcerário local. Os dois órgãos públicos e a entidade de advogados vinham alertando as autoridades sobre a iminente possibilidade de rebeliões nas unidades prisionais do Estado – premonição consumada em janeiro deste ano quando um motim no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia resultou em nove mortos, 14 feridos e na fuga de 242 detentos. Promotores, defensores e advogados também acompanharam de perto os desdobramentos provocados pela crise carcerária e participaram das vistorias de emergência determinadas pela presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministra Cármen Lúcia.
Marcelo Celestino, há dois anos titular da 25ª Promotoria Criminal de Justiça de Goiânia, afirma que o episódio na Colônia Agrícola de Aparecida de Goiânia era “uma tragédia bastante anunciada”. A simples observância da Lei de Execução Penal permitiu ao promotor perceber a eminência da crise.
A Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/1984) diz que, entre outras responsabilidades, o MP deve intervir obrigatoriamente durante toda a fase de execução da pena, competindo-lhe fiscalizar todo o procedimento. As vistorias nas unidades prisionais estão entre as competências do órgão e, em Goiás, são feitas com frequência pelos promotores que atuam na área.
Em inspeção realizada em dezembro de 2017, a condição degradante das alas chamou a atenção do promotor. “Uma cela improvisada em uma estrutura que deveria abrigar uma enfermaria, com 64m², abrigava 150 presos, que precisavam se revezar para dormir. Além disso, o fornecimento de água estava cortado havia três dias”, relembra.
Marcelo Celestino afirma que a rebelião aconteceu justamente em virtude da falta de estrutura mínima para atender os detentos. No dia do motim, havia 1.254 presos na unidade projetada para abrigar 468, número 210% superior à capacidade. O promotor explica que as mortes ocorreram quando parte dos custodiados começou a destruir os prédios e acabou se encontrando com rivais de outras alas.
À época, os presos que trabalhavam e apenas pernoitavam na unidade eram divididos em blocos distintos em virtude das facções criminosas que integravam. Essa realidade já havia inclusive motivado o Ministério Público a solicitar ao Poder Executivo o aluguel de dois galpões na área urbana para receber os dois grupos no período da noite.
Para o titular da 25ª Promotoria Criminal de Justiça de Goiânia, Marcelo Celestino, a rebelião na Colônia Agrícola de Aparecida de Goiânia aconteceu por falta de estrutura mínima para atender os detentos. FOTO: G. Dettmar/Agência CNJ
No ano passado, o MP também solicitou a ampliação do fornecimento de tornozeleiras eletrônicas. “Com o equipamento, o preso está monitorado, em contato com a família e com um custo muito mais baixo para o Estado, cerca de R$ 200, enquanto ele custa aproximadamente R$ 3 mil no presídio”, observa Marcelo Celestino.
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Em paralelo, era articulado com o Poder Executivo um programa para que reeduncados do regime semiaberto, ainda sem oportunidade de trabalho, atuassem na conservação de parques e jardins da capital. As duas ações acabaram saindo do papel justamente após a rebelião.
Harmônica integração
O diálogo entre os órgãos responsáveis pela execução penal é apontado pelo MP como ação de grande importância para a consolidação de melhorias no sistema prisional e, consequentemente, no cumprimento das penas.
Laura Pereira da Silveira, coordenadora do Núcleo de Defensorias Especializadas em Execução Penal e titular da 4ª Defensoria Especializada em Execução Penal de Goiás concorda com o representante do MP. “A importância (dessa interlocução) é muito grande. Na execução da pena, pelo menos, há de se ter ciência que temos objetivos convergentes, previstos no primeiro dispositivo da LEP, que é efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”, diz.
De acordo com a legislação brasileira, a Defensoria Pública tem o dever de atuar em favor dos necessitados em todos os graus e instâncias do Poder Judiciário, de forma individual e coletiva, e tem, entre outras funções, a de declarar a extinção da punibilidade do sentenciado e instaurar incidentes de excesso ou desvio de execução.
Sobre as medidas tomadas pelo Estado após a rebelião na Colônia Agrícola de Aparecida de Goiânia, Laura afirma que foram positivas, mas não resolveram questões estruturais do sistema penitenciário local. “A mudança realizada imediatamente foi a redução de pessoas recolhidas no estabelecimento destinado ao cumprimento da pena no regime semiaberto em razão das péssimas condições. Para isso, a situação de inúmeras pessoas foi analisada por meio do mutirão determinado pela ministra Cármen Lúcia”, diz.
Relatório produzido pelo Núcleo Especializado de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de Goiás, baseado em vistorias e entrevistas com presos realizadas na Casa do Albergado e na Colônia Agroindustrial no último mês de janeiro, apresentou 32 recomendações para garantir a aplicação correta da Lei de Execução Penal (LEP), e, como consequência, diminuir a tensão dentro do sistema, tendo como principal ponto a necessidade de reestruturação da 2ª Vara de Execução Penal de Goiânia (2ª VEP).
Após reunião com a presidente do CNJ, dez defensores públicos foram destacados exclusivamente para a atuação no mapeamento do sistema carcerário e nas audiências da força-tarefa designada pelo CNJ para analisar processos, o que garantiu a movimentação de boa parte do estoque e a concessão de benefícios para muitos custodiados.
Etapa da reestruturação da 2ª Vara de Execução Penal de Goiânia (2ª VEP), a divisão do acervo da unidade que cuida dos processos dos presos dos regimes aberto e semiaberto, que, à época, era responsável por 8,8 mil ações, foi feita por determinação do Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO).
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Laura Pereira da Silveira afirma que o processo de digitalização das ações nas varas de execução penal da capital goiana, iniciado em maio deste ano, é atualmente um dos maiores desafios. “Como grande parte dos apenados está recolhida em estabelecimentos penais, a análise das questões jurídicas é urgente. A suspensão do trâmite processual tem prejudicado diversos apenados, inclusive com atrasos na efetivação dos benefícios e na resolução de questões jurídicas importantes para a continuidade regular no cumprimento da pena”, diz.
A defensora pública destaca que a resolução de questões básicas, como a visita da companheira que não tem certidão de união estável lavrada em cartório, também pode apaziguar a população carcerária. Para ela, a concessão de benefícios na execução nas datas projetadas é outra forma de acalmar os encarcerados. “O cumprimento da pena em um sistema penitenciário em condições legais, com justiça e concessão de oportunidades, favorece a reintegração do apenado e evita a reincidência, não desejada por nenhum ator do sistema de Justiça”, completa.
Mudança cultural
Apesar de a OAB não ter a sua atuação especificada na LEP, os advogados ocupam, assim como a Defensoria Pública, importante papel na interlocução com a massa carcerária. A ação da entidade, ao longo das últimas décadas, sempre apontou para a situação precária do sistema penitenciário de Goiás. Assim como o MP e a Defensoria Pública, a entidade produziu diversos relatórios ao longo dos últimos anos para expor as deficiências e a falta de dignidade dos estabelecimentos penitenciários do Estado.
Presidente da Comissão de Direitos Humanos, Roberto Serra da Silva Maia conta que os acontecimentos na Colônia Agroindustrial de Aparecida de Goiânia já haviam sido previstos pela OAB. “Isto por conta das inúmeras inspeções realizadas ao longo dos anos, com encaminhamento de ofícios e solicitação de providências ao Poder Executivo”, afirma. Em 2015, a entidade chegou a ajuizar uma ação civil pública na Justiça Federal com pedido de interdição da unidade justamente em razão da absoluta inadequação do local para acolhimento de presos.
Serra destaca que, apesar de o advogado ser o interlocutor dos custodiados com o Poder Judiciário e quem mais frequenta as unidades prisionais, ele é o último a ser chamado para contribuir quando esses eventos ocorrem. “Essa crise chamou a atenção do Brasil, a ponto de trazer ao Estado a dirigente máxima do Poder Judiciário, ministra Cármen Lúcia. Isso foi um ponto positivo, pois as atenções foram focadas no estado de Goiás e houve uma mobilização tanto do Poder Executivo quando do próprio Judiciário”, diz.
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-GO, Roberto Serra da Silva Maia, afirma que presença da ministra Cármen Lúcia em Goiás colocou atenções sobre o Estado, com mobilização do Poder Executivo e do Judiciário. FOTO: G. Dettmar/ Agência CNJ
O advogado diz ter notado melhoria na análise dos processos dos presos dos regimes aberto e semiaberto por conta das determinações da ministra ao TJ-GO. “Primeiramente, uma questão de cultura precisa ser modificada. Os problemas do sistema prisional vêm sendo resolvidos infelizmente somente após tragédias. Têm que acontecer decapitação de pessoas, corpos carbonizados, esquartejamentos, para que algo seja feito. Uma lição que fica desses acontecimentos é que não podemos continuar agindo pós-tragédia”, disse o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-GO.
Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias