Luciana* matou o padrasto após uma tentativa de assédio sexual há cinco anos, mas somente no ano passado ela foi sentenciada a ser internada em uma instituição socioeducativa para jovens em conflito com a lei. No mês em que foi condenada, ficou sabendo que tinha passado no vestibular para psicologia. Envergonhada, não quis sequer tentar garantir sua vaga na universidade. Na instituição, onde pode ficar por três anos, não há estudo compatível com seu nível. Desde que chegou, passa a maior parte do tempo trancada em um quarto. Algumas vezes é permitido às meninas internadas assistirem novelas. Veste diariamente o uniforme laranja do estabelecimento e não pode trocar abraço, beijar, nem se olhar no espelho (o objeto é vetado pela direção da instituição). Aos 18 anos, Luciana apresenta sinais de depressão e sua história, com nome trocado para preservar a identidade, é semelhante à de muitas internas em instituições do país estudadas a pedido do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Para conhecer o universo de adolescentes do sexo feminino que cumprem medidas socioeducativas (a sanção para quem comete crime antes dos 18 anos), o CNJ encomendou estudo à Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), que, com uma equipe de professoras e alunos da instituição, junto ao Grupo Asa Branca de Criminologia, entrevistou jovens, agentes socioeducativos e funcionários da equipe técnica de seis instituições de internação localizadas no Distrito Federal, Pernambuco, São Paulo, Rio Grande do Sul e Pará.
O diagnóstico desvendou vários aspectos dessa realidade, como estrutura física, disciplina interna, direitos individuais, saúde e educação e visita íntima, e pontos mais subjetivos, como a relação das internas com os profissionais e a percepção do cumprimento da medida socioeducativa pelas adolescentes e pelos funcionários.
“Se já temos dificuldades para acompanhar e compreender a realidade das unidades de internação, sabemos menos ainda sobre o universo das adolescentes, que representam um número muito pequeno no universo de jovens em cumprimento de medida socioeducativa”, diz o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), do CNJ, Luís Geraldo Lanfredi, sobre a necessidade do estudo. Para desenvolvê-lo, foram ouvidos, além das próprias adolescentes, os funcionários que estão no dia a dia com as meninas, como psicólogos, assistentes sociais, advogados, médicos, enfermeiros e agentes socioeducativos.
De acordo com os últimos dados nacionais oficiais, enquanto eram contados 11.463 meninos internados, o número de meninas estava em 578. No geral, a estrutura das casas de internação para adolescentes segue a lógica prisional, com muitas grades, contenção em quartos, pouca ou nenhuma atividade pedagógica, além de pouco espaço para individualidade (apesar do número de meninas ser muito menor que o de meninos). Educação, cultura e esporte são escassos.
De acordo com o artigo 68 da Lei n. 12.594/2012, que criou o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), é assegurado ao adolescente casado ou que viva união estável o direito à visita íntima. Na prática, contudo, as meninas, diferentemente dos meninos, não desfrutam desse benefício e, em algumas unidades, não podem se olhar em um espelho. Algumas instituições proíbem também abraçar ou tocar umas às outras. “Infelizmente, a lógica dessas instituições é semelhante à das cadeias para adultos”, diz a coordenadora da pesquisa, Marília Montenegro.
Perfil – Entre as conclusões, está a prevalência de meninas negras, pobres e com envolvimento com o tráfico de drogas – seja por relacionamento amoroso ou pelo trabalho como ‘mulas’ ou ‘olheiras’. Quando sentenciadas por homicídio, não raro foram motivadas a cometer o crime após serem vítimas de violência sexual. Na comparação com os adolescentes infratores, ficam mais tempo internadas do que eles mesmo tendo cometido a mesma infração, não recebem apoio nem visita frequente da família e, além da liberdade, são privadas de educação e afeto.
De acordo com a pesquisa, boa parte das meninas internadas praticou crimes em um ambiente cercado de violência e vulnerabilidade social e sua internação não muda muito esse quadro. Segundo as adolescentes entrevistadas, suas reações às proibições impostas são quase sempre avaliadas como erradas pela equipe técnica e frequentemente geram punições, como o isolamento.
Falta de acompanhamento – O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê, para o cumprimento de quaisquer medidas socioeducativas – sejam elas em regime de prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade ou internação –, a elaboração do Plano Individual de Atendimento (PIA). O instrumento de acompanhamento individual de cada interna deve conter, além dos dados de registro, a gestão das atividades a serem desenvolvidas com ela e a previsão de saída da adolescente da instituição.
Entretanto, segundo a pesquisa, poucas adolescentes tiveram acesso ao seu próprio PIA. A maioria sequer sabia no que consistia o Plano e, em alguns estados, o instrumento não é elaborado de forma sistemática. “É um desmanche total do que prevê o ECA. Se o Estado não se prontifica sequer a conhecer as meninas, então, de fato, o que ele vem fazendo é tão somente punir”, avalia a pesquisadora, para quem a internação tem pouco valor de recuperação.
“É preciso mais conhecimento e menos encarceramento. Esse isolamento da família e da sociedade traz muitos ônus: depressão, déficit escolar, quebra de vínculo familiares, baixa autoestima. A retirada da adolescente do convívio social diminui a perspectiva de aceitação dela na sociedade”, conclui.
A íntegra da pesquisa pode ser acessada aqui.
Regina Bandeira
Agência CNJ de Notícias