Política judiciária busca preservar história da Justiça e do Brasil

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Péla, produzida em látex, foi meio utilizado por serigueiro para requerer, na Justiça, a aposentadoria. Foto: Arquivo
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No ano de 2003, o então presidente do Tribunal de Justiça do Acre (TJAC), desembargador Arquilau de Castro Melo, recebeu, de forma inusitada, um requerimento escrito na superfície de uma péla. A bola de borracha produzida artesanalmente pelos seringueiros, para conservação, transporte e posterior industrialização do látex extraído das seringueiras tinha os seguintes dizeres: “JOSÉ JULIÃO DE ALMEIDA 58 ANOS DE SERINGA. NÃO FUI APOSENTADO PELO SOLDADO DA BORRACHA”.

Os soldados da borracha foram trabalhadores convocados para extrair borracha dos seringais amazônicos, para fornecer látex aos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Pela participação no esforço de guerra, a Constituição Federal de 1988 conferiu o direito a uma pensão especial àqueles que tivessem renda mensal inferior a dois salários mínimos.

O postulante à pensão, morador de uma localidade conhecida como “Oco do Mundo”, na divisa entre o Município de Sena Madureira e a capital Rio Branco, foi chamado a explicar pessoalmente aquela mensagem, o que demandou a instauração de processo judicial. Episódios como esse, relatado pelo amigo do magistrado e conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Marcos Vinícius Jardim Rodrigues, pontuam a história da Justiça brasileira e do Brasil. A aprovação da resolução que cria uma política nacional para a gestão de documentos e da memória do Poder Judiciário, na sessão plenária do CNJ de 23 de junho, deve diminuir a distância entre os 200 anos dessa história e o grande público.

“É uma história do direito realizado independentemente do instrumento. A beleza representada em coisas mínimas, mas fundamentais, mostra a história do Poder Judiciário, a força dessa instituição, desse poder”, afirmou o conselheiro, que preside a Comissão Permanente de Gestão Documental e de Memória do Poder Judiciário. Foi nessa comissão, integrada também pelas conselheiras Ivana Farina e Tânia Reckziegel, que a proposta de resolução tomou forma antes de ser submetida ao Plenário do Conselho e se tornar uma política judiciária de alcance nacional.

A norma insere definitivamente a gestão da memória na estrutura administrativa dos tribunais. A partir de agora, os tribunais terão de elaborar instrumentos que valorizem o patrimônio material e imaterial do Poder Judiciário, com a ajuda da tecnologia disponível. Por meio do Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do Poder Judiciário (Proname), será formulada proposta que padronizará os procedimentos de gestão documental e de gestão da memória na Justiça. Para isso, serão atualizados manuais que já existem e orientam os tribunais, sobretudo, a preservar documentos.

O único ato normativo que tratava do tema, até então, era uma recomendação de 2011. Mesmo assim, priorizava a triagem e conservação de documentos e arquivos. Na 312ª Sessão Ordinária do CNJ, em junho de 2020, ela foi transformada em resolução. O ato define “gestão da memória” como um conjunto de ações e práticas de preservação, valorização e divulgação da história do Poder Judiciário contida em seus documentos, processos, arquivos, bibliotecas, museus, memoriais, personalidades, objetos e imóveis, abarcando iniciativas direcionadas a pesquisa, conservação, restauração, reserva técnica, comunicação, ação cultural e educativa. “A resolução representa um resgate da história dos tribunais, mas não significa apenas preservar papel e realizar eventos comemorativos no Poder Judiciário local, mas sim disseminar história, envolver a sociedade civil e as escolas no processo, estimular a produção acadêmica a respeito”, disse o conselheiro Marcos Vinícius Rodrigues.

Dia da Memória

Uma oportunidade para divulgar a memória do Poder Judiciário e a participação das figuras que fizeram a história da Justiça brasileira é o Dia da Memória do Poder Judiciário, criado este ano pelo Plenário do CNJ. O dia do ano escolhido foi 10 de maio por ser a data da criação da Casa de Suplicação do Brasil pelo Alvará Régio, em 1808. Casa de Suplicação do Brasil foi como D. João VI, então príncipe regente, denominou o órgão da instância final da Justiça, que só receberia o nome vigente até hoje de Supremo Tribunal Federal em 1891. A primeira edição do Dia da Memória do Poder Judiciário foi prejudicada pela pandemia da Covid-19, mas revelou vários acervos virtuais das cortes brasileiras.

A tecnologia, segundo o conselheiro Jardim Rodrigues, será aliada da preservação da memória da Justiça brasileira. “O acervo material dos tribunais não abrange apenas documentos, mas móveis e edifícios representam a história de sua produção. Muitos foram produzidos em Portugal, mas hoje se encontram praticamente ‘escondidos’. Como são centenários, têm visitação restrita, mas podem ser visualizados virtualmente”, avalia.

Raridades escondidas

Advogado da seccional do Acre da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o conselheiro conta que seu estado abriga raridades, como as fotografias da expedição de Euclides da Cunha ao Acre. Além disso, está no estado o acervo pessoal que o célebre escritor, jornalista e também engenheiro militar deixou na viagem que fez no início do século passado, para demarcar a fronteira do então Território Federal.

Dois centros culturais hoje guardam lembranças de tempo em que a segunda instância da Justiça do Acre (TJAC) era sediada em Manaus e, anos depois, no Rio de Janeiro. O Centro Cultural do Juruá, em Cruzeiro do Sul, funciona no prédio público mais antigo do Acre, construído em 1912 como prefeitura departamental do Alto Juruá. O Palácio da Justiça, em Rio Branco, tornou-se Centro Cultural em 2008. “A sociedade brasileira não vai vir ao Acre só para conhecer essas histórias, mas se tiver um tour virtual disponível, vai poder ver toda essa história materializada na bola de borracha manuscrita, no trabalho que foi escrever na péla enquanto ainda estava úmida”, disse Rodrigues, ao rememorar a história do inusitado pedido de aposentadoria rural feito à Justiça Acreana.

O seringueiro José Julião ainda enviou uma segunda péla, desta vez com uma mensagem de agradecimento, e remeteu sua “carta” ao desembargador que o auxiliou na conquista de sua aposentadoria rural. “Foi a forma, simplória, inusitada, mas justa e real, que encontrou para manifestar seu reconhecimento e assim, fazer história”, afirmou o conselheiro.

Comissões permanentes

A Comissão Permanente de Gestão Documental e de Memória do Poder Judiciário foi criada por meio da Resolução 296/2019. Desde novembro de 2019, o CNJ conta com 13 colegiados formados por, ao menos, três conselheiros para o estudo de temas e o desenvolvimento de atividades específicas do interesse respectivo ou relacionadas com suas competências. Os trabalhos podem ter a participação de autoridades, magistrado e servidores – do CNJ ou de outros órgãos – e ainda contar com o apoio de assessorias, auditorias ou atividades congêneres com órgãos, entidades e instituições de natureza pública ou privada.

Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias