Regras de Bangkok jogam luz nas mazelas de gênero do sistema penal, diz autora

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Publicada pela atual gestão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a versão oficial em português das Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras, conhecidas como Regras de Bangkok, é o primeiro passo para auxiliar o Estado brasileiro a solucionar as dificuldades de gênero no sistema carcerário. A opinião é da jornalista Nana Queiroz, que percorreu dez presídios femininos brasileiros ao longo de quatro anos e relatou o cotidiano dessas mulheres no livro “Presos que Menstruam”, lançado em 2015. 

Segundo a jornalista, as mulheres encarceradas sofrem dupla negligência, pois, além de pertencerem ao grupo já marginalizado dos presidiários, muitas vezes são tratadas como homens e deixam de ter acesso a itens básicos de saúde, como absorventes ou exames ginecológicos. A autora relata que a situação é ainda mais grave quando as presas são mães e ficam encarceradas junto com os filhos ou possuem dependentes fora da prisão, pois mesmo inocentes, esses filhos acabam sofrendo as mesmas dificuldades vividas por um detento. 

Além das estatísticas que apontam crescimento da população carcerária feminina em 567% nos últimos 15 anos, chegando a mais de 37 mil presas em 2014, o relato da jornalista confirma a necessidade de o CNJ continuar dedicando atenção ao tema. Além da tradução das Regras de Bangkok, o CNJ trabalha atualmente em uma resolução que pretende estabelecer princípios e diretrizes para o acompanhamento das mulheres e gestantes presas, bem como seus filhos, com objetivo de dar mais estrutura a essas crianças e impedir que elas eventualmente optem pelo caminho da criminalidade no futuro.

Na entrevista abaixo, a jornalista fala sobre os problemas do encarceramento feminino no Brasil e da importância da publicação das Regras de Bangkok em português para auxiliar a mudar esse cenário.

CNJ: Qual situação do sistema prisional feminino você encontrou durante suas visitas?

Nana Queiroz: As condições que encontrei eram as piores possíveis, nunca visitei um presídio feminino em condições ideais no Brasil, todos sofriam de infiltração e bolor. Houve um caso no Norte do país onde encontrei uma mulher que sofreu aborto espontâneo e não passou por curetagem, ela estava com febre e saía um liquido grosseiro, era uma situação de revirar o estômago. O exemplo mais emblemático foi a questão dos absorventes, que não eram distribuídos com suficiência nos presídios. Ouvi mulheres que usavam até miolo de pão, jornais e camisetas rasgadas, uma coisa subumana. Também existe a questão das crianças presas. Quando você não considera a especificidade de gênero, você não considera que mulheres engravidam e que precisam de pré-natal, de vitaminas, de exame de mama, de colo de útero. Você tem quase duas mil crianças dormindo em colchão mofado em chão de penitenciária, porque o Estado se recusa a ver que mulher tem filho e que essas crianças merecem um tratamento humano, afinal se tem alguém que é inocente preso no Brasil são essas crianças. Essa é a realidade mais cruel de todo esse sistema.

Qual a importância de o CNJ ter lançado a tradução oficial das Regras de Bangkok dentro desse contexto?

As Regras de Bangkok abordam muito bem a questão da maternidade de forma humana, para garantir que a criança tenha contato com a mãe não só porque é bom para a ressocialização da mãe, mas porque é bom para a psiquê da criança e para o desenvolvimento dela. Se ela vai conviver com a mãe, ela precisa de um ambiente de estímulo educativo, tem de ter fim de semana com a família quando possível, tem de socializar com outras crianças, conviver com animais, ter banho de sol, cuidado médico, uma série de coisas que são abordadas nas Regras de Bangkok e são muito importantes para essas crianças. É por desconsiderar as especificidades de gênero que o Brasil comete as maiores violações de direitos humanos no sistema carcerário feminino do Brasil. Traduzir essas regras é democratizar o acesso à informação, pois a maioria das pessoas que trabalha no sistema carcerário, assim como a maioria da população brasileira, não lê inglês. É um passo que pode parecer pequeno, mas na realidade significa muito, porque você leva a sério e institucionaliza uma lei internacional da qual o Brasil é signatário e que deveria ser seguida dentro do país.

Quais as soluções mais imediatas que poderiam ser adotadas de acordo com a realidade que você encontrou no sistema penal feminino?

Quando as Regras de Bangkok foram feitas, ainda não havia certas tecnologias que hoje existem no Brasil, como a tornozeleira eletrônica, que poderiam ser usadas para que as mães e gestantes não fiquem na cadeia. O ideal seria adaptar a realidade da mãe à necessidade da criança, e não o contrário, principalmente no Brasil, onde o maior perfil de presas é de baixa periculosidade. Outra opção a ser pensada são os copinhos menstruais, uma tecnologia recente, que poderia resolver o fornecimento de absorventes.

Como surgiu a ideia de investigar o universo carcerário feminino mais a fundo?

Eu tive a ideia de fazer o livro porque conheci uma mulher que trabalhou anos no sistema carcerário feminino e que me contou muitas histórias, mas quando fui pesquisar mais detalhes era um completo silêncio, todos faziam de conta que essas mulheres não existiam. Passei quatro anos pesquisando, visitei dez presídios, fiz muitas visitas dentro e fora dos presídios, falei com especialistas, demorei mais um ano para escrever e revisar. A produção foi um processo muito dolorido, porque não vivenciei as mesmas coisas que essas mulheres, mas houve uma empatia muito grande, os dramas me doeram muito.

Deborah Zampier
Agência CNJ de Notícias