O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apoia projetos, ações e programas institucionais para que as unidades judiciárias cumpram os objetivos de realizar Justiça e de proteger os direitos humanos. Idealizada pelo órgão em parceria com os tribunais, a Estratégia Nacional do Poder Judiciário é um conjunto de diretrizes que serve de orientação para o trabalho a longo prazo, mais precisamente seis anos.
Para verificar o desempenho dos tribunais dos diferentes ramos de Justiça no cumprimento da Estratégia Nacional do Poder Judiciário foram estabelecidos indicadores específicos por macrodesafios. O primeiro deles, e que diz respeito diretamente à sociedade, é a garantia dos direitos fundamentais –, cujo indicador de desempenho é o Índice de Acesso à Justiça (IAJ). Esse índice é composto por 14 variáveis que mensuram o acesso à Justiça da população e levam em conta componentes sociais, históricos, de infraestrutura e outros, como percentual de pessoas acima de 50 anos, taxa de escolarização, e percentual de residência com água encanada.
Em relação à Justiça, especificamente, há quatro indicadores específicos que servem de parâmetro para a mensuração do IAJ: tempo médio da decisão judicial; quantidade de casos novos do 1º grau por 100 mil habitantes; taxa de magistrados e taxa de varas/juizados na população. “Quanto maior o índice de magistrados, de unidades e de processos em tramitação, assim como menor tempo médio de tramitação de casos na Justiça, melhor é o Índice de Acesso à Justiça”, explica a pesquisadora do PNUD responsável pela elaboração da pesquisa junto ao Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ, Rafaela Bueno.
A realização de programas, projetos e ações que ajudem a aumentar esses números contribui para o cumprimento da Estratégia Nacional. É o caso das Salas Lilás – projeto criado no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) em 2014, e que prevê a criação de um espaço especial para atendimento e acolhimento de vítimas de violência física ou sexual que farão exame de corpo de delito em Institutos Médico-Legal (IMLs).
Dignidade
As Salas Lilás estão presentes em IMLs do Rio de Janeiro e, nelas, equipes formadas por psicólogas e assistentes sociais atendem de maneira respeitosa e solidária a, em sua maioria, meninas e mulheres vítimas de violência, evitando que o momento da coleta de material, de exames e testes reforce o trauma passado e aumente a chance de identificação e punição do autor do crime. A equipe acompanha as vítimas durante todo o processo, inclusive, no encaminhamento ao serviço de abortamento legal caso seja necessário.
Antes da implantação da ação, muitas vítimas se recusavam ou não completavam o exame por medo, trauma, vergonha ou dor. Para a juíza Adriana Mello, titular do 1º Juizado Especializado em Violência contra a Mulher do Rio de Janeiro e idealizadora do projeto Sala Lilás, ao contribuir com a obtenção de provas qualificadas, consequentemente a iniciativa contribui com a realização da Justiça.
“Ao agir de acordo com protocolos de atenção à vítima de violência, os peritos policiais conseguem identificar com mais precisão as circunstâncias do crime e seus autores, permitindo que o Judiciário repare, dentro do possível, os danos causados contra essa vítima”, diz a magistrada.
Direito das vítimas
O Brasil ratificou importantes acordos internacionais, que preveem respeito e compaixão no tratamento a vítimas. O atendimento adequado do Estado oferecido pela Sala Lilás atende a esses compromissos. “Mas é preciso lembrar que a prática desse atendimento precisa de orientação, capacitação. Todos que lidam com vítimas de violência precisam estar dispostos a conhecer esses protocolos para assegurarmos a não revitimização na prestação de nosso trabalho”, completa a juíza.
As Salas funcionam em cinco Institutos Médico-Legais do Rio – no Centro, em Campo Grande, em Petrópolis, em Niterói e em São Gonçalo. Nelas, somente no mês de maio, 167 mulheres, vítimas de violência física ou sexual, foram atendidas. O IML de São Gonçalo foi o que teve maior número de atendimento (80), seguido de Campo Grande (69) e do IML do Centro (18). Em abril, o número total de casos atendidos nas Salas Lilás foi de 158 e, em março, 70, segundo dados das Secretarias Municipal de Saúde.
Para o projeto funcionar, o TJRJ precisou fazer parcerias com a Polícia Civil, com a Secretaria Estadual de Saúde, com as Secretarias Municipais de Saúde e com uma organização da sociedade civil. A ação já foi replicada em outros estados e funciona, atualmente, em algumas cidades do Mato Grosso do Sul, do Rio Grande do Sul e de Goiás.
No restante do país, a maioria dos casos de violência física e sexual o atendimento ainda é feito de forma não especializada, e, muitas vezes, realizado por profissionais do sexo masculino, gênero estatisticamente mais frequentemente identificado com a identidade de gênero do agressor. Em 2019, cerca de 1,2 milhão de pessoas com 18 anos ou mais de idade sofreram violência sexual; 73% das vítimas eram mulheres, segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde.
Humanização
Foi justamente um atendimento não adequado e traumatizante de uma jovem de 14 anos, vítima de crime sexual, ocorrido em 2014, que fez a juíza Adriana Mello ter a ideia do projeto voltado a um atendimento multidisciplinar e humanizado. “Naquele momento, percebi que tínhamos de fazer algo, pois o Estado estava causando um mal maior a essas cidadãs, já vítimas de uma violência anterior. Fosse por falta de estrutura, péssimas condições, instrumentos não especializados, atendimento vexatório, a verdade é que o sofrimento imposto pelo Estado foi e continua sendo, muitas vezes, tão nefasto, ao ponto de podermos falar em violência institucional.”
Assim como as Salas Lilás, outras ações encabeçadas por tribunais contribuem para o cumprimento dos direitos fundamentais dos brasileiros. No Pará, magistradas criaram um projeto para ampliar o conhecimento da sociedade em relação aos crimes cometidos contra crianças e adolescentes. “Minha Escola, Meu Refúgio” foi desenvolvido pela 1ª Vara de Crimes contra a Criança e Adolescente do Tribunal de Justiça do Pará (TJPA) para ajudar a orientar professores, pais e alunos a reconhecerem sinais de abuso sexual de crianças e adolescentes.
Visibilização
A ação tem como foco o ambiente escolar, uma vez que os alunos estabelecem vínculos de confiança e afeto com os professores. Palestras são ministradas a pais, mães, responsáveis, professores, e os próprios estudantes, para que eles possam entender as situações de violações de direitos. O projeto Minha Escola, Meu Refúgio tem parceria com escolas, sociedade civil e com a Secretaria Estadual de Segurança Pública.
Ao serem capazes de identificar sinais de mudança de comportamento dos alunos que podem estar sendo vítimas de violência, os professores e orientadores encaminham essas situações ao Sistema de Justiça. “A escola é um espaço de refúgio para essas crianças e jovens, vítimas de violência. Infelizmente, a maioria dos casos ocorre mesmo no ambiente familiar, então é lá que ela acaba podendo conversar sobre o assunto, caso seja alertada sobre seus direitos”, diz a coordenadora do projeto, a juíza Mônica Maciel Soares Fonseca.
A magistrada aponta alguns sinais que podem revelar que aquele jovem está em situação de violência psicológica, física ou abuso sexual. “Depressão, isolamento, disfunções fisiológicas (não conseguir segurar o xixi ou o cocô, por exemplo), distúrbios alimentares, automutilações, tentativas de suicídio. Se não estendermos a mão o quanto antes para essas vítimas, escutando-as e denunciando os casos, a situação delas pode ficar muito grave e levar a consequências muitas vezes irreversíveis”, alerta a idealizadora da iniciativa, que treina e conscientiza professores e funcionários das escolas públicas do Pará.
O projeto – criado em 2014 – faz visitas periódicas aos colégios, com distribuição de cartilhas, vídeos educativos e revistas em quadrinhos elaboradas pela própria juíza e sua equipe, na tentativa de reduzir o número de casos de violência, mas também de aumentar sua visibilidade. “Como os crimes sexuais contra crianças são praticados em geral, sem testemunhas oculares, há necessidade de se romper o pacto de silêncio que envolve o tema, para que seja quebrado o ciclo da violência.”
Em plena pandemia da Covid-19, o programa Justiça Rápida Digital do Tribunal de Justiça de Rondônia (TJRO) também impactou diretamente no Índice de Acesso à Justiça (IAJ). Ao passar a fazer atendimentos e audiências com ajuda do aplicativo WhatsApp, a corte consolidou uma maneira alternativa, mais rápida e barata, para solucionar conflitos. Para cada tipo de assunto, o TJRO criou um número de WhatsApp especial, facilitando o atendimento.
Os números de telefones se diferenciam em oito tipos de conflitos: guarda de crianças entre pais; alimentos e visitas para os filhos; reconhecimento de paternidade; dissolução de união estável; divórcio imediato amigável (com bens e/ou filhos); divórcio imediato amigável (sem bens/filhos); danos materiais e cobrança de pequenos valores. Segundo o TJRO, 82% das audiências terminaram com acordo entre as partes e tem ajudado a reduzir o tempo médio de tramitação dos processos.
A medida também permitiu levar a Justiça a pessoas que moram em áreas mais distantes, e que, em um atendimento tradicional, não teriam condições de buscar ajuda da Justiça. Quando é feito via WhatsApp não exige o deslocamento às unidades judiciárias, o que contribuiu com as recomendações sanitárias de distanciamento social, determinado pelas autoridades de saúde do país.
Estratégia Nacional
O atual ciclo da Estratégia Nacional do Poder Judiciário iniciou neste ano e segue até 2026, quando o CNJ se reunirá mais uma vez com os membros da Justiça para estabelecerem novas diretrizes. As ações e projetos não apenas ajudam os tribunais a cumprirem as diretrizes de médio e longo prazo estabelecidas pelo Conselho para melhorar o acesso à Justiça, como também estão em conformidade com legislações nacionais, entre elas Constituição Federal e a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), e acordos internacionais assumidos pelo Brasil de apoio aos direitos das vítimas, como o Protocolo de Atuação Judicial para Casos de Violência de Gênero contra as Mulheres (Chile, 2014) e a Carta Ibero-Americana de Direitos das Vítimas (Argentina, 2012).
O artigo 227 da Constituição Federal prevê a responsabilidade solidária da família, da sociedade e do Estado na proteção integral de crianças e adolescentes contra qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Regina Bandeira
Agência CNJ de Notícias
Essa matéria faz parte de uma série que apresenta a Estratégia Nacional do Poder Judiciário 2021-2026, desde sua elaboração, passando pelo detalhamento dos 12 macrodesafios até a fase de monitoramento e avaliação.