Delegacias de polícia em que crianças vítimas de violência se sentem acolhidas. Conflitos envolvendo o mundo infantojuvenil resolvidos em rodas de conversa da Justiça Restaurativa. Integração qualificada entre Justiça, segurança pública e rede protetiva. Esses foram alguns dos exemplos de ações desenvolvidas em prol de um sistema de Justiça multiportas amigável a crianças e adolescentes em contexto de violência e vulnerabilidade foram apresentados nesta sexta-feira (20/8), durante o Seminário do Pacto Nacional pela Primeira Infância – Região Sul.
No painel “Aprimoramento do Sistema de Justiça para proteção e promoção do desenvolvimento na primeira infância”, representantes do Judiciário, do Ministério Pública, da Defensoria Pública e da área de Segurança Pública da região apresentaram iniciativas em prática que fortalecem uma Justiça preventiva e protetiva, na qual crianças e adolescentes são protagonistas.
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A “Delegacia Amiga da Criança”, projeto-piloto bem-sucedido na área da segurança pública desenvolvido em Marmeleiro (PR), foi um dos destaques. Para prevenir a exposição das crianças a relatos de violência quando seus pais ou responsáveis são atendidos pela delegacia, o projeto criou uma brinquedoteca, oferecendo atenção específica a elas.
Delegado responsável pelo projeto, Wilkinson Fabiano Oliveira de Arruda apresentou o novo conceito, comentando que a delegacia funciona como espécie de clínica geral no atendimento às mais diferentes situações envolvendo crianças e jovens. A nova concepção, afirma, humaniza as estruturas policiais e o atendimento e melhora a relação com a comunidade, desenvolvendo um relacionamento baseado em confiança e respeito mútuo.
Ele também tratou da realidade das delegacias, marcada por estruturas duras, gradeadas, com força policial tida como hostil em situações em que prevalece déficit orçamentário. Para mudar essa realidade, o delegado sugere maior integração entre o Sistema da Justiça e o de Segurança Pública, inclusive para que não haja violência institucional contra as crianças e adolescentes.
“É impossível falar da priorização prevista na Constituição, no ECA e na Convenção dos Direitos da Criança, sem que olhemos para o sistema de justiça criminal em que as delegacias de polícia geralmente são estruturas que não são amigas das crianças, não respeitam as necessidades da primeira infância e muitas vezes impingem não uma sensação de segurança, acolhimento e pertencimento, mas de pavor, temor e muitas vezes de medo”, comentou.
Cuidados
Em uma visão complementar, o desembargador Leoberto Brancher, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), explicou os métodos de Justiça Restaurativa baseados na comunicação não violenta para a solução de conflitos e ação preventiva e para o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários no entorno de crianças e jovens. Essa atuação é, na opinião dele, complementada pela integração das equipes de trabalho e articulação de rede de proteção à primeira infância.
“Com esse modo de proceder, podemos transformar conflitos em oportunidades de crescimento e contribuir no desenvolvimento de habilidades que nos tornam mais capazes de estabelecer conexões mais efetivas e compartilhamento de subjetividade, ativando o que temos de mais positivo. E é por isso que, saindo dos porões das celas prisionais, a Justiça Restaurativa pode entrar na pauta de um programa como esse, de cuidados com a infância”, afirmou Brancher.
Nas experiências dos estados da Região Sul, o presidente do Conselho de Supervisão dos Juízos da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), desembargador Wolff Bodziak, contou que o Judiciário paranaense não tem medido esforços para implementar estratégias para tornar efetivas as garantias dos direitos de crianças e jovens. “Para isso, é de vital importância que os operadores do Direito tenham claras as responsabilidades de se aproximar da rede de proteção e convocar a todos para a necessidade de esforços coletivos em prol da população atendida, principalmente crianças e adolescentes.”
O trabalho articulado entre diferentes órgãos e a rede de proteção a crianças e adolescentes foi apresentada pela presidente do Colégio de Coordenadores da Infância e Juventude dos Tribunais de Justiça do Brasil, a juíza Noeli Salete Tavares Reback do TJPR. Entre as várias ações feitas em rede, e a partir da Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal, estão a estruturação do depoimento especial em quase todas as comarcas, medidas de prevenção e enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes, a adesão ao Pacto da Infância Segura e a criação do Comitê Interinstitucional Protetivo de acompanhamento de crianças e adolescentes durante a pandemia com atenção ao acolhimento e à população infantojuvenil vítima de violência.
Escuta protegida
A escuta protegida e o depoimento especial foram temas expostos pelo procurador do Ministério Público do Paraná e integrante do grupo de apoio à Comissão da Infância e da Juventude do CNMP, Murillo José Digiácomo. Em sua avaliação, esses dois instrumentos do sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência não podem ser vistos de forma isolada, mas no contexto amplo da política de atendimento ao público infantojuvenil.
Digiácomo explicou que o sistema de garantia previsto na Lei n. 13.431/2017 para todos os municípios é integrado pela rede de proteção (formada por órgãos municipais e estaduais), pelo sistema de Justiça e pelo sistema de segurança pública. “É importante deixar claro que é necessário que haja uma interação entre esses órgãos que integram o sistema de garantia e o estabelecimento prévio de fluxos e protocolos de atendimento que funcione 24 horas por dia, sete dias por semana. Isso para que, a qualquer momento, quando houver necessidade, a criança ou o adolescente que se supõe vítima de violência ou testemunha de violência possa não só ser ouvido, mas atendido de forma ampla por quem tem a competência para isso.”
A política pública deve, conforme expôs Murillo Digiácomo, abarcar as medidas de prevenção, proibição, atendimento aos pais, medidas socioeducativas, atendimento aos egressos, responsabilização dos vitimizadores e acompanhamento dos casos.
Defensores para crianças
As atribuições e percepções da Defensoria Pública sobre essa sensível questão foram elencadas pela defensora pública do Rio Grande do Sul, Cláudia Barros. Ela argumentou que crianças e adolescentes são indivíduos com direitos e garantias próprios que devem possuir defensores específicos e serem considerados como parte do processo, em lugar de serem representados.
“O defensor da criança não pode se arvorar em tentar entender e traduzir o pensamento dela, mas fazer com que a criança ou o adolescente possa ter sua voz ouvida e possa ser levado a participar das ações nos tribunais”, disse. “Não basta que eles sejam reconhecidos como sujeitos de direitos sem que se permita que possam ter um protagonismo judicial e exercê-lo ativamente e os mecanismos de justiça devem ser acessíveis e adequados, sem exigências que restrinjam injustificadamente a participação de crianças e adolescentes”, acrescentou.
Luciana Otoni
Agência CNJ de Notícias
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