Aldeias indígenas e comunidades tradicionais de quatro estados participam de projeto-piloto coordenado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para melhorar a forma de a Justiça ouvir crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência e que pertençam a povos ou comunidades tradicionais. Em webinário realizado na segunda-feira (27/9), as coordenadoras da iniciativa pelo CNJ, a conselheira Flávia Pessoa e a juíza auxiliar da Presidência do CNJ Lívia Peres, discutiram os desafios de se elaborar um protocolo para a tomada de depoimento especial de crianças e adolescentes de povos ou comunidades tradicionais que sofram ou testemunhem atos de violência.
Adaptar o procedimento de escuta para que passe a contemplar a diversidade cultural brasileira é uma determinação da Resolução CNJ n. 299/2019. A conselheira Flávia Pessoa destacou a necessidade da construção coletiva de uma política que contemple a diversidade cultural brasileira. De acordo com ela, após a edição da Resolução, o CNJ percebeu que seria impossível elaborar um protocolo sem uma experiência prática antes.
No atual estágio do projeto, profissionais participantes observam as particularidades dos modos de vida de indígenas, ciganos e quilombolas para criar um novo formato de depoimento especial, que permita a depoentes desses grupos sociais se sentirem seguros e acolhidos. A conselheira do CNJ agradeceu a colaboração dos Tribunais de Justiça do Amazonas (TJAM), da Bahia (TJBA), do Mato Grosso do Sul (TJMS) e de Roraima (TJRR) na realização do projeto piloto e explicou os passos da elaboração coletiva que está sendo realizada.
“O objetivo é que, além de elaborarmos um protocolo ao final do projeto, consigamos mudar a forma de fazer resoluções e protocolos no CNJ. Muitas vezes eles são editados por pessoas com experiência na área, mas não passam por teste prévio. Nesse caso, tentamos evitar que as diretrizes viessem de cima, porque há necessidade de oitiva, teste, … E sendo feito da forma mais participativa possível”, afirmou Flávia Pessoa.
Histórico
O depoimento especial, exclusivo para ouvir crianças e adolescentes, foi um avanço em relação à participação desse público em processos da Justiça criminal. Desde 2010, uma Recomendação do CNJ indicava aos tribunais brasileiros a criação, na estrutura administrativa dos órgãos de Justiça, de serviços especiais para escuta de pessoas com menos de 18 anos de idade. A recomendação foi transformada em lei em 2017.
O assistente social da prefeitura de Dourados (MS) Kennedy de Souza Ava Katuá destacou a oportunidade de se construir uma política pública a partir do diálogo intercultural, especialmente em Mato Grosso do Sul, o segundo estado com maior população de indígenas no país, com 65 mil pessoas. Lembrou que, desde 2003, quando o Brasil assinou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), é direito dos indígenas participaram das discussões que resultem em decisões que os afetem.
Ava Katuá, que é do povo Guarani, também ressaltou o avanço que representa a previsão de um intérprete no depoimento especial, assim como a previsão de que as perguntas sejam feitas em bloco, de modo a não prolongar a escuta e não revitimizar a criança. O líder indígena defendeu a possibilidade de a vítima ser ouvida no seu espaço, no seu território, dentro de contexto em que se sinta segura, livre.
“Esses poderes que os senhores têm na mão é o que vai permitir construir um protocolo que de fato venha a atender crianças nas suas especificidades, sem perder de vista o conceito de interculturalidade, que tem de basear essa discussão. A partir daí, crianças terão mais chance de ser atendidas como manda a lei, e haverá a possibilidade de trabalhar toda a família nesse contexto”, afirmou.
Ava Katuá participou virtualmente do webinário, da aldeia Bororo, em Dourados/MS, onde no início de agosto uma criança indígena Kaiowá de 11 anos foi assassinada após sofrer estupro coletivo. Dois acusados foram denunciados à Justiça pelo Ministério Público na última sexta-feira (24/9), por homicídio duplamente qualificado.
Diferenças
O Estado brasileiro reconhece atualmente 28 grupos como povos e comunidades tradicionais, desde ribeirinhos a comunidades de terreiro e de pescadores artesanais. Quando algum membro dessa minoria é alvo ou testemunha de algum ato de violência, no entanto, é sujeito ao procedimento-padrão da Justiça brasileira, que ainda desconsidera as diferenças culturais dessas comunidades que se mantém há séculos seguindo tradição e modos de vida próprios.
A coordenadora de Infância e Juventude do TJMS, desembargadora Elizabeth Anache, afirmou que a diferença cultural precisa ser entendida por meio do diálogo e da troca de conhecimentos, para que se alcance um protocolo de depoimento especial que abranja os interesses de todos. “Os povos e comunidades tradicionais possuem critérios específicos para marcar passagem para a vida adulto, modos particulares de iniciação sexual de seus jovens, critérios que demarcam transições variam de povo a povo. Além disso, concebem violência sexual de forma distinta que na chamada sociedade ocidental.”
No Amazonas, são 26 povos indígenas representados nos dois municípios onde está em curso o projeto: São Gabriel da Cachoeira e Tabatinga. O projeto-piloto também abrange três municípios baianos, onde vivem integrante da comunidade de terreiro (Cachoeira), descendentes de quilombolas (Santo Amaro) e ciganos (Eunápolis). No Mato Grosso do Sul, o projeto está em três municípios (Dourados, Amambaí e Mundo Novo) para contemplar famílias de três etnias indígenas e, em Roraima, outras duas etnias participam da iniciativa em dois municípios, Boa Vista e Bonfim.
De acordo com a juíza auxiliar da Presidência do CNJ Livia Peres, o Estado brasileiro tem uma tendência a abordar soluções para problemas com o objetivo de atender o máximo de indivíduo, apesar da diversidade. “Pode parecer um número pequeno de indivíduos que fazem parte desse grupo de diversidade etnocultural, mas que precisam ser atendidos e ter as suas especificidades reconhecidas para chegarmos ao melhor formato de atendimento, considerando que para o Estado Democrático de Direito é fundamental não apenas atender a maioria, mas a minoria, respeitadas as suas especificidades para que desigualdades sejam compensadas. Esse é o grande trabalho: a compensação de desigualdades.”
Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias
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