Entregar bebês para adoção não é uma prática recente, embora ainda esteja envolta em tabu e preconceito, como mostra o caso da atriz Klara Castanho. Foi permitida por lei no Brasil em 1990, quando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) passou a garantir à mulher o direito à entrega voluntária do bebê, com manifestação do desejo antes ou logo após o parto.
No ano de 2017, a Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) elaborou o projeto Entrega Responsável, preparando todas as 165 comarcas do estado para entrarem em sintonia com a rede de atendimento dos municípios, que inclui o sistema de saúde e os Centros de Referência da Assistência Social (Cras).
Ao longo de 2022, já foram realizadas sete entregas voluntárias no Rio Grande do Sul – as comarcas não são reveladas, para manter o sigilo das mulheres. Dados de anos anteriores não foram compilados, mas, segundo o titular, o juiz-corregedor do TJRS Luiz Antônio de Abreu Johnson, é um número que se manteve parecido. E a estimativa é que o próximo semestre apresente uma média de outras sete mulheres realizando a entrega voluntária.
Na maioria dos casos, garante Johnson, a gestante que decide dar o bebê para adoção passa por grandes dificuldades financeiras e revela, quando questionada sobre sua decisão, a vontade de oferecer à criança um futuro melhor – o que não seria possível caso permanecesse com o filho.
Confira a entrevista com o juiz:
Como acontece a entrega voluntária?
A entrega voluntária está prevista legalmente no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). É dever de todos os juízes, em todos os Juizados da Infância e Juventude, receber aquele recém-nascido cuja mãe, por razões que ela deseja ou não externar, quer passar o bebê adiante. E aí, o sistema judiciário deve receber a criança para dar a ela o direito à convivência familiar e comunitária. Desde 2017, o poder judiciário do Rio Grande do Sul desenvolve o projeto Entrega Responsável, através da Coordenadoria da Infância e Juventude, da qual sou titular. A mãe manifesta seu desejo de não exercer a maternidade ao sistema de saúde ou ao poder judiciário de seu município, seja durante a gestação, seja logo após ter o bebê. A grande maioria faz isso durante a gestação, quando começa a fazer os exames pré-natais, e geralmente porque não há condições econômicas de criar a criança. Ali, a mulher já começa a receber atendimento psicológico, porque, depois que a criança nascer, a lei impõe ao juiz que recolha a manifestação dessa mulher, dizendo que não deseja ser mãe. Isso se dá em uma audiência com a presença do Ministério Público. A mulher já vem para a audiência assistida por psicólogo ou psiquiatra, porque o juiz tem que ter a certeza de que ela está manifestando sua vontade de forma livre, que está com seu juízo mental perfeito – embora seja um momento de muita emoção para a mulher, porque é um filho natural que ela está entregando para adoção. Convoca-se os casais que estão na fila do Sistema Nacional de Adoção e a criança é adotada. A partir desse momento, é extinto o poder familiar que aquela mulher exercia sobre a criança. Isto é a entrega voluntária. Às vezes, a mulher tem medo de procurar o judiciário porque pensa que será criminalizada, mas a entrega voluntária não é crime.
Quais são os serviços que podem ser acionados?
Normalmente é pelo sistema de saúde, quando a mulher faz o pré-natal, além dos Centros de Referência da Assistência Social (Cras). É importante que cada comarca busque a sua rede para explicar como funciona esse projeto. Aqui em Porto Alegre, funciona há tempo, porque o Juizado da Infância já tinha um fluxo com as maternidades, mas o projeto foi ampliado. Com certeza, quando a mulher chegar na rede hospitalar, será informada para procurar o juizado. O projeto Entrega Responsável, criado pela Coordenadoria, é para dar um fluxo padrão a todas as comarcas.
Quanto tempo leva esse processo de adoção pela entrega voluntária?
Um ou dois meses. O processo de adoção demorado é aquele em que o Estado tem que intervir, ou seja, naqueles casos em que a criança ou adolescente é submetido a maus-tratos e a abusos. Então o Estado tem que entrar com ação para destituição do poder familiar. Este processo é demorado, porque cabe ao Estado, através de uma sentença, dizer que a família não tem condições de criar a criança.
Foram sete entregas voluntárias de crianças para adoção neste ano no Rio Grande do Sul. Não é pouco, se pensarmos nas mulheres que muitas vezes assumem um filho sem desejar, ou mesmo que abortam ilegalmente?
Não é pouco. Entregar um filho para adoção é um ato de muita coragem e de muito senso de realidade.
Qual é o perfil das mulheres que entregam as crianças de forma voluntária?
A grande maioria dos casos é mulheres com problemas econômicos. São mulheres vulneráveis. Elas dizem: “Quero dar para a criança um futuro que eu não tenho condições de dar”. A maioria teve relações rápidas com alguém e engravidou sem desejar. É uma vida de extrema vulnerabilidade, com um trabalho informal – muitas, por algum período, eram vinculadas às drogas, embora isso não seja mais tão frequente. Mas a ideia de um futuro melhor é muito presente.
O que diz a lei sobre a adolescente que engravidou e não deseja ser mãe?
A maioria dos casos de entregas voluntárias é de mulheres adultas, mas, se acontece de uma adolescente engravidar e querer dar o bebê, ela precisa estar acompanhada de um adulto. Nenhuma menor de idade entrega a criança sem ter um responsável legal.
Existe a possibilidade de o bebê ser entregue à família extensa, mesmo se a mulher não quiser entregar a criança a seus familiares?
É respeitado o desejo da mulher. No caso de adolescentes gestantes, a gente busca trabalhar a possibilidade de a família ficar com a criança, mas, se é de comum acordo entre adolescente e responsável que não ficará, a criança vai para adoção. Se a gestante não quer que o bebê fique no seio familiar, ele não ficará.
A entrega voluntária permite que a mulher que não deseja ser mãe passe o bebê adiante para uma família que deseja criar um filho. Ou seja, torna a vida menos penosa para todos os envolvidos. Mas ainda há muito tabu sobre o assunto.
São preconceitos impregnados na sociedade. É uma forma de ver a família como propriedade, e não se pensa no amor, no afeto com que os bebês devem ser criados. Imagine um filho ser criado sem as bases fundamentais para o desenvolvimento de sua personalidade. Sabe-se que carinho e amor são fundamentais para o desenvolvimento psicológico saudável. A entrega voluntária é uma decisão pessoal. Cabe ao sistema judiciário o acolhimento desta mulher, a verificação das condições psicológicas para o ato de entregar a criança à adoção e, fundamentalmente, assegurar ao recém-nascido o direito a uma boa criação através da família que irá adotá-lo.
Muitas pessoas acham que a mulher que está doando seu bebê está sendo negligente, que não tem amor.
A negligência está naquela família desestruturada que submete o filho a maus-tratos, e daí o Estado precisa intervir.
Em cidades menores, deve ser difícil que ocorra as entregas voluntárias.
O juiz sempre estará preparado para isso. Aqui em Porto Alegre, basta procurar o CRAS, onde a mulher terá todo o acolhimento, ou mesmo nos hospitais, porque aqui é uma cidade grande, onde as relações são mais informais. Em um município pequeno, sabe-se que todos conhecem a vida de todos, então já fica difícil. Até pode ter uma boa rede de acolhimento nessa cidade, mas será difícil a decisão dessa mulher, embora todo o sigilo seja assegurado.
Todos os envolvidos no processo de entrega voluntária da mulher têm dever de sigilo?
Todos, tanto os profissionais do sistema de saúde, quanto da Justiça. Podem responder legalmente caso quebrem o sigilo. É uma quebra de um dever ético e legal, tanto que as audiências com a mulher são sigilosas.
Fonte: CIJ/TJRS