Ao menos 40 mil atos de violência sexual contra crianças e adolescentes viraram processos judiciais no Brasil, em 2016. Desses, cerca de 35 mil foram de estupros cometidos por adultos. Os dados foram extraídos do Painel Justiça em Números, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com informações dos tribunais brasileiros.
Por trás dos números, pode haver uma realidade ainda mais estarrecedora. No mesmo ano, foram reportados ao Disque-Denúncia cerca de 145 mil casos de violência psicológica e física, incluindo a sexual, e negligência, contra crianças e adolescentes. E, em 94% dos casos, os suspeitos eram parentes próximos ou conhecidos da vítima.
O CNJ vem trabalhando para concretizar a Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência Doméstica, instituída este ano pela Portaria n. 15/2017).
A norma não só dá maior agilidade na resolução dos casos judiciais que envolvem violência doméstica, como prevê ações de atendimento multidisciplinar às vítimas, sejam elas mulheres adultas ou crianças e adolescentes, como consta na Lei Maria da Penha. De acordo com a juíza auxiliar da Presidência do CNJ Andremara dos Santos, o foco da Política é a mulher, mas também a família que vive o cotidiano violento.
“A Lei Maria da Penha é um marco na proteção da mulher, mas, sem dúvida, impactou mais na mulher adulta do que na adolescente e na criança. E as crianças são muito mais vulneráveis e, infelizmente, estão muito mais invisíveis”, disse a juíza. Para Andremara, crianças e jovens precisam ser inseridos no conjunto de proteção prevista pela justiça. “O simples fato de habitar um local onde exista esse tipo de violência já é uma violência”, disse.
A violência infantil gera traumas físicos e psicológicos que se refletem por toda a vida. Especialista em violência doméstica e sexual contra crianças e adolescentes, a psicóloga Adriana Dajuz diz que nos lares atuais falta amorosidade e sobra agressividade. “Muitas vezes crianças ou adolescentes tentam contar a verdade e são desacreditadas; outras vezes, escondem a violência por vergonha e medo das reações agressivas. Infelizmente, se a violência não é tratada, mas naturalizada, ela não termina. As próximas vítimas serão os irmãos, filhos, cônjuges, em um ciclo interminável”, disse a psicóloga.
O CNJ orienta os tribunais a participar de iniciativas voltadas ao atendimento integral e multidisciplinar às vítimas de violência. Entre as ações sugeridas pelo Conselho estão parcerias entre entidades governamentais e não governamentais nas áreas de segurança, assistência social, educação e trabalho, em programas de combate e prevenção a todas as formas de violência contra a mulher.
Ciclo de violência
Para o juiz auxiliar da Presidência do CNJ Alexandre Takaschima, a implantação do modelo voltado para um atendimento integral e multidisciplinar precisa de maior adesão do Judiciário. “É preciso sensibilizar os juízes para o encaminhamento das crianças e jovens. Não olhar a vítima apenas como um depoente, para fins do processo. Mas mirar no futuro desse jovem, na superação do trauma, naquilo que ele precisa para seguir adiante”, diz.
Takaschima também aponta questões orçamentárias dos tribunais para a dificuldade na implantação das equipes técnicas multidisciplinares. “Temos um déficit de assistentes sociais e psicólogos nas unidades para trabalhar essas demandas. São demandas específicas, que apenas o conhecimento jurídico não dá conta”, afirma.
Psicólogos, médicos e juízes concordam que para lidar com casos de violência praticados contra crianças é preciso que autores sejam punidos, vítimas recebam cuidados e pais, orientações. No entanto, poucas instituições no país possibilitam tratamento especializados às vítimas de maneira integral, preconizado não só pela Lei Maria da Penha, como também pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
“O ideal seria um trabalho integrado, entre entes ligados à saúde e educação. Você não consegue olhar para a criança com um olhar protetivo se não olhar para o entorno dela”, diz Takaschima ao se referir à iniciativa do CNJ de criar protocolos e políticas públicas nos estados, nos tribunais, nas secretarias estaduais, com esse “olhar de cuidado” às vítimas.
Lei Maria da Penha
Em vigor há 11 anos, a Lei Maria da Penha prevê medidas integradas de prevenção à violência doméstica e familiar por meio da educação com foco de gênero. A política pública está a cargo da União, estados e municípios e de ações não governamentais. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), após a entrada em vigor da norma, houve queda de 10% nos casos de homicídios domésticos em comparação aos anos anteriores à legislação.
Os números de processos relativos à violência contra mulheres, no entanto, continuam elevados. Segundo dados do Judiciário brasileiro, com base em informações dos Tribunais de Justiça, tramitam no país quase um milhão de processos relativos aos casos de violência doméstica no País.
Regina Bandeira
Agência CNJ de Notícias