A saúde é direito de todos e dever do Estado. O art. 196 da Constituição Federal foi claro ao determinar que este é um direito social fundamental e universal dos brasileiros. Ao instituir o Sistema Único de Saúde (SUS), o texto constitucional assegurou o acesso gratuito, universal, integral, descentralizado e igualitário a todos, do mais rico ao mais pobre.
Tratado com peculiar importância, o assunto ganhou seção própria (Seção 2, Capítulo 2, “Da Seguridade Social”) na Carta Magna e exigiu uma complexa e radical mudança na gestão e também na execução das políticas públicas do setor. Até então, o modelo adotado dividia as pessoas entre quem podia e quem não podia pagar pelos serviços de saúde. Somente trabalhadores com carteira assinada tinham acesso ao atendimento hospitalar de qualidade, que era gerido pelo extinto Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps).
“De lá para cá, evoluímos muito. Antes, não havia nenhuma garantia e, hoje, até estrangeiros que estão no Brasil podem usar o nosso sistema de saúde. Não é exatamente o melhor dos mundos, há ainda muitas falhas no atendimento básico, mas caminhamos bastante”, afirma o conselheiro Arnaldo Hossepian, supervisor do Fórum Nacional do Poder Judiciário para a Saúde, supervisionado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
As falhas – constantes negativas de medicamentos, tratamentos e produtos médicos que deveriam ser ofertados administrativamente – deram início a um fenômeno que cresce a cada ano: a judicialização da saúde. “Há um alto volume de processos judiciais tratando disso, uma indicação de omissão por parte do Executivo. Mas não é só isso. A judicialização atingiu um grande mercado. Há vários interesses nisso e o papel do Judiciário é equilibrar o interesse particular com o interesse público, de modo a evitar excessos e tutelar adequadamente o cidadão”, diz o juiz Clênio Schulze, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região e integrante do Fórum da Saúde.
O aumento exponencial das demandas impacta diretamente no trabalho dos juízes brasileiros, razão pela qual o CNJ está debruçado sobre o tema desde 2010, quando foi editada a Resolução CNJ n. 107/2010, que instituiu o Fórum da Saúde. A atuação do grupo, ao longo dos últimos oito anos se deu em várias frentes com o objetivo de ampliar o debate a respeito do tema, reunir os atores diretamente envolvidos com a questão e auxiliar os magistrados que lidam diariamente com essas demandas.
Para se ter ideia da grandeza do problema, no relatório Justiça em Números 2017 (ano-base 2016), há 1.346.931 menções ao tema saúde, que envolvem demandas relativas a planos de saúde, fornecimento de medicamentos, erro médico, reajuste da tabela do SUS, entre outros. Em 2014, esse número não chegava a 400 mil, segundo levantamento feito pelo Fórum da Saúde.
Gastos em alta
O impacto desse aumento na busca pelo Poder Judiciário não causa sobrecarga apenas aos juízes. Atualmente, a judicialização tem consumido parte significativa do orçamento da União, estados e municípios. Em oito anos, o Ministério da Saúde (MS) gastou R$ 5 bilhões para atender a determinações judiciais na compra de medicamentos, insumos e suplementos alimentares: aumento de 912%, entre 2010 e 2017. No ano passado, apenas o MS gastou R$ 1 bilhão para cumprir demandas de ações judiciais que pleiteavam aquisição dos 10 medicamentos mais custosos. Até maio de 2018, o gasto estava em R$ 649 milhões.
Diante desses números, o ministério começou a se mobilizar. Em 2016, firmou parceria com o CNJ para a criação de um banco de dados com informações técnicas para subsidiar os magistrados de todo o país em ações judiciais na área da saúde, o e-NATJus. No ano seguinte, criou o Núcleo de Judicialização, hoje chamado de Coordenação Geral de Gestão de Demandas Judiciais em Saúde. O objetivo é atender melhor as demandas judiciais e garantir que a medicação solicitada é mesmo indicada ao paciente e, de fato, trará benefícios.
Idealizado pelo CNJ, o e-NATJus foi lançado em dezembro de 2017, durante o XI Encontro Nacional do Poder Judiciário. “A implementação de ferramentas técnicas que contribuam para que os magistrados possam julgar de maneira mais segura e qualificada as ações de saúde que tramitam na Justiça servirá para evitar a judicialização temerária, que é algo que desestabiliza o sistema de saúde e sobrecarrega o Judiciário brasileiro”, explica o conselheiro Arnaldo Hossepian.
Atuação dos juízes
Atualmente, o banco de dados, hospedado no Portal do CNJ, conta com quatro notas técnicas e 36 pareceres (medicamentos para tratamento de câncer, fibrose cística, cirrose, entre outros), que oferecem base científica para as decisões dos magistrados de todo o País quando estes precisam julgar demandas de saúde. Na área pública do sistema, é possível acessar os documentos disponíveis e ainda solicitar notas para casos específicos. Clique aqui para acessar a plataforma.
“O juiz deve ter uma atuação forte quando houver negativa de uma política já incorporada no SUS ou no rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Mas quando se trata de nova política pública, de um novo tratamento, sem evidências científicas comprovadas, a atuação deve ser mais cautelosa, mais deferente, a fim de evitar desorganização do sistema” diz Clênio Schulze.
Antes de iniciar os trabalhos para a criação do sistema, o CNJ consultou e visitou tribunais de Justiça e tribunais federais no esforço de identificar as dificuldades encontradas pelos juízes no momento de decidir sobre essas demandas. O resultado dessa ação resultou na Resolução CNJ n. 238/2016, que determinou a especialização de varas de saúde nas comarcas em que houvesse mais de uma vara de fazenda pública e também a implantação dos Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NATs-Jus) nos tribunais de Justiça e tribunais federais em que eles ainda não existiam.
Diante desse cenário, o advogado e professor da Universidade de São Paulo Paulo Henrique dos Santos Lucon aponta alguns caminhos para promover mais celeridade nas decisões com segurança jurídica. O trabalho extrajudicial, na opinião do especialista, pode ser uma das saídas. “A judicialização da saúde é um problema tormentoso. É importante fazer com que as coisas funcionem antes de eclodir. Se eclodir, temos de valorizar os processos coletivos”, disse. Para o professor, trata-se de uma questão estratégica do Estado. “Não se trata de abrir mão das ações individuais, mas de beneficiar um número maior de pessoas”.
Ao alterar de forma profunda as diretrizes da saúde pública brasileira, a Constituição de 1988 representou um avanço histórico. Nas últimas décadas, no entanto, as deficiências das instituições encarregadas de prestar os serviços públicos geraram um problema ao cidadão. “No contexto atual, no qual o “SUS real” se distancia cada vez mais do “SUS constitucional”, crescem os conflitos alimentados tanto pela frustração das expectativas criadas pelo texto constitucional quanto pela inércia governamental diante desse quadro. Tais conflitos encontraram no sistema de Justiça espaço receptivo”, afirma o defensor público do Distrito Federal Ramiro Sant´Ana, integrante do Fórum da Saúde.
O defensor diz que o ponto central desse debate é o enfrentamento da injustiça no acesso aos serviços públicos de saúde. “Tal injustiça afeta, sobretudo, os indivíduos e os grupos das classes populares, que são exatamente aqueles que são mais afetados pelos obstáculos de acesso e pelo processo de precarização dos serviços públicos de saúde”, diz Ramiro Sant´Ana, que foi o vencedor do Prêmio Capes de Tese 2018 da área de direito pelo trabalho “A Judicialização como Instrumento de Acesso à Saúde: propostas de enfrentamento da injustiça na saúde pública”.
Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias