Pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontou que ainda não existe uniformização do atendimento de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, mesmo com a sanção da Lei n. 13.431/2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos dessas pessoas. “Os resultados não devem ser recebidos com desalento, mas como uma demonstração do caminho a ser seguido”, enfatizou o secretário especial de Programas, Pesquisas e Gestão Estratégica do CNJ, juiz Richard Pae Kim.
A obtenção do relato completo de uma criança ou adolescente vítima ou testemunha de uma violência, muitas vezes a única prova do processo, pode ser primordial para o esclarecimento de determinado caso. No entanto, para que este processo desgastante não gere ainda mais impactos negativos à vítima, foi sancionada, em abril de 2017, a Lei n. 13.431. Desde então, o depoimento especial deve obrigatoriamente ser adotado pelos tribunais em todo o país. Antes, em 2010, o método já era indicado pelo CNJ por meio da Recomendação n. 33/2010.
O secretário especial de Programas, Pesquisas e Gestão Estratégica do CNJ (SEP/CNJ), Richard Pae Kim, e o analista do Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ (DPJ/CNJ) Lucas Delgado apresentaram os resultados da pesquisa sobre oitiva de crianças no Judiciário. Foto: Gil Ferreira/Agência CNJ
Como mais um produto da série Justiça Pesquisa, composta por análises sobre os temas definidos como prioritários pelo CNJ, o relatório divulgado na terça-feira (28/5) apresenta resultados de um estudo que procurou verificar como tem se dado a efetivação dos direitos da criança e do adolescente vítimas ou testemunhas de violência quando da tomada de testemunho pelo Poder Judiciário, tendo em vista a necessidade de se preservar a integridade física e psicológica nos processos em que seja necessária a sua escuta.
“O resultado foi bastante diversificado. Há locais em que os protocolos de atendimento previstos em lei são executados com uma estrutura adequada e profissionais experientes. Já em outras cidades visitadas, como as localizadas no interior de alguns estados, há níveis de cumprimento diferentes destes marcos normativos”, destaca o analista do Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ (DPJ/CNJ), Lucas Delgado.
Entre as falhas mencionadas por Delgado está a falta de isolamento acústico nas salas onde as crianças e jovens prestam depoimento. ”Se o agressor estiver perto, ouve tudo, e isso é alarmante”, enfatizou. Outro destaque, de acordo com o analista, é que as pessoas entrevistadas acreditam que é “satisfatório” a criança ser ouvida, pelo menos, duas vezes. “Sabemos do impacto da temporalidade na memória, a contemporaneidade, e ainda tem a questão da revitimização”, disse. O estudo recomenda aos tribunais a capacitação da equipe e uma maior articulação com os agentes envolvidos no processo para evitar que a criança tenha que ficar repetindo a história várias vezes.
A pesquisa qualitativa foi realizada presencialmente em cidades nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Distrito Federal, Goiás, Pará e Ceará. Durante a execução da pesquisa ao longo de 2018, também foram realizadas entrevistas com profissionais que atuam diretamente com crianças e adolescentes que vivenciaram ou presenciaram algum tipo de violência, como: promotores, juízes, advogados, psicólogos, assistentes sociais e demais servidores.
Escuta humanizada
O cumprimento da Lei n. 13.431/2017 serve para evitar que a criança ou o adolescente reviva o sofrimento e a angústia da violência sofrida ou presenciada, o que pode provocar a revitimização. A escuta da criança e do adolescente deve ser realizada por meio de depoimento especial, uma técnica humanizada com uma equipe multidisciplinar e uma estrutura adequada, em um ambiente reservado e que seja mais adequado ao universo infantil.
Com os resultados obtidos e compilados no relatório, o CNJ passa a ter uma percepção da realidade de como a lei está sendo aplicada na prática, levando em consideração que a pesquisa reflete as cidades pesquisadas e não o país como um todo. Além disso, as informações contribuirão para a formulação de políticas judiciárias que permitirão avanços para a efetiva aplicação da Recomendação n. 33/2010 do CNJ e da Lei n. 13.471/2017, em todo o Brasil, que podem passar pela aquisição de equipamentos até a capacitação e contratação de servidores para atuarem diretamente com a matéria.
Proteção à criança e ao adolescente
A pesquisa foi apresentada durante o Seminário Nacional “O Sistema de Garantia de Direitos na Efetivação da Proteção a Crianças e Adolescentes em situação de violência sexual e os desafios da implementação da Lei n. 13.431/2017 – Lei da Escuta), na sede da Procuradoria Geral da República, em Brasília. Na ocasião, o presidente do Fórum Nacional da Infância e da Juventude (Foninj) do CNJ, conselheiro Luciano Frota, destacou que a Lei n. 13.431/2007 está no escopo de trabalho do Fórum, que estuda, inclusive, um normativo para fortalecer o Sistema de Justiça pela proteção das crianças e adolescentes.
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Durante o encontro, foram apresentadas também diversas pesquisas sobre o atendimento das crianças após a denúncia de abuso. De acordo com pesquisador da Childhood Brasil, Benedito Rodrigues, apenas 6% dos casos de abuso infantil são responsabilizados legalmente. “Hoje não temos políticas preventivas. Além disso, estimulamos a denúncia, mas o sistema ainda falha por falta de uma sistematização do atendimento”, afirmou Rodrigues. Para ele, se não houve uma mudança na lógica de atendimento setorizado, o cenário de revitimização não irá mudar.
Sobre o funcionamento integrado dos agentes públicos, a coordenadora do Centro de Referência no Atendimento Infanto juvenil (CRAI) de Porto Alegre, Eliane Soares, apresentou o modelo utilizado no Hospital Maternoinfantil Presidente Vargas, em Porto Alegre. Em um andar do hospital, funcionam todas as etapas de atendimento à criança vítima de violência, inclusive com posto policial para registro de boletim de ocorrência. Em apenas 24 horas, o laudo do atendimento é entregue para a família nos casos mais graves. “A criança e o responsável são imediatamente atendidos, inclusive por psicólogos. Evitamos fazer perguntas sobre o ocorrido no pronto-atendimento, pois esse não é o momento e assim a criança não precisa ficar repetindo a história várias vezes. Ela falará sobre o caso no local adequado”, explicou.
Anualmente, o CRAI atende mais de 1.900 crianças e adolescentes, número ainda considerado baixo pela coordenadora. “Sabemos que o número de abusos é muito maior, mas já crescemos bastante se observarmos que, em 2002, atendíamos apenas 300 crianças por ano”, avaliou.
Renato Capanema, da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça e da Segurança Pública (MJSP), enfatizou a importância da união entre a sociedade civil e os órgãos públicos para fazer valer a Lei. “Queremos fazer um pacto com o objetivo de unir esforços para que a Lei seja efetivamente implementada”, afirmou.
Douglas Saviato e Paula Andrade
Agência CNJ de Notícias