Eram 10 da manhã quando o lavrador Antônio* recebeu seu alvará de soltura depois de cumprir pena por violência doméstica. Não tinha dinheiro, ninguém esperando por ele, nem para onde ir. Em um dia normal, voltaria para as ruas apenas com o alvará em mãos, mesmo que a decisão saísse no meio da noite. Com o apoio de novos fluxos criados para o mutirão carcerário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no Espírito Santo, Antônio foi atendido por um profissional que avaliou suas necessidades mais urgentes antes de deixar a prisão, entre elas a ligação para a mãe e uma vaga em albergue.
A qualificação de procedimentos de soltura e a preocupação com a acolhida social daqueles que deixam o estabelecimento prisional, permitindo que pessoas que já resolveram pendências com a Justiça tenham condições mínimas de retornarem ao convívio social, é um dos principais ganhos promovidos pelo CNJ no mutirão iniciado em setembro no Espírito Santo. Os novos fluxos foram desenvolvidos pelo DMF junto com o programa Justiça Presente, parceria entre o CNJ, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e o Ministério da Justiça e Segurança Pública para resolver problemas estruturais do sistema penal e socioeducativo no país.
“Como o país não tem uma política nacional para egressos articulada e consistente, muitas respostas saem de improviso e não é raro que essas pessoas voltem para as ruas em condições de vulnerabilidade, o que não é bom para elas e muito menos para a sociedade. O Justiça Presente vem justamente auxiliar magistrados e gestores públicos a repensarem e qualificarem esses fluxos com respostas mais efetivas que atendam ao interesse público ”, explica o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Medidas Socioeducativas do CNJ, Luís Lanfredi. De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), somente no primeiro semestre de 2017 cerca de 169 mil pessoas deixaram o sistema penitenciário em nosso país.
A soltura qualificada de egressos durante o regime de mutirão foi desenvolvida pelo Eixo 3 do Justiça Presente, dedicado a ações de cidadania dentro e fora dos presídios. Além de contratar 17 profissionais via Programa de Voluntários das Nações Unidas para apoiar o atendimento psicossocial do estado, o programa trabalhou com a Secretaria de Justiça do Espírito Santo para a emissão de nota técnica com novos fluxos de atenção às pessoas egressas, como o atendimento por equipes psicossociais ao deixarem as unidades prisionais, a verificação de necessidades emergenciais e o referenciamento para o Escritório Social.
Escritório Social
Estrutura fomentada pelo CNJ desde 2016, o Escritório Social é uma estrutura de gestão compartilhada entre Judiciário e Executivo para um atendimento mais qualificado ao egresso, entendendo suas necessidades para facilitar a reintegração. O modelo misto capixaba já fez mais de cinco mil referenciamentos em três anos de funcionamento e terá sua estrutura replicada pelo CNJ em pelo menos 12 unidades da federação até o fim do ano.
Desde o início do mutirão, o Justiça Presente vem apoiando o Executivo estadual para potencializar e ampliar os atendimentos do Escritório Social. “O Escritório foi um ganho sem precedentes para o estado e precisamos trabalhar para que seja cada vez mais consolidado e reconhecido. Nesse sentido, refinar e institucionalizar fluxos e papéis, facilitando a mobilização e articulação com outros atores da execução penal como a rede de atendimento socioassistencial e de saúde e com demais atores estratégicos, é fundamental para políticas mais efetivas voltadas à pessoa egressa”, explica Pollyanna Alves, coordenadora adjunta do Eixo 3 do Justiça Presente.
De acordo com a subsecretária de Ressocialização da Secretaria da Justiça do Espírito Santo, Roberta Ferraz, as contribuições do CNJ durante o mutirão devem trazer um aporte permanente para o estado. “A chegada do Justiça Presente com o apoio da equipe de voluntários das Nações Unidas foi essencial para que tivéssemos um novo olhar sobre nossos processos e o que pode ser feito para otimizarmos nossos serviços. Com o fim do mutirão e o dos contratos dos voluntários em novembro, iremos avaliar o que funcionou e a ideia é que isso seja institucionalizado na política de egressos do estado”, explica.
Ela também evidenciou a importância da criação de fluxos para egressos e de se trabalhar a articulação da rede de atendimento. “Vimos o quão essencial é a criação de fluxos para quem está saindo do sistema, pois se não damos suporte, o próprio Estado colabora para reentrada. Quanto à rede, é importante entender que aquele sujeito é filho da terra, e que o diálogo entre atores é essencial para entendermos o que cada um tem para oferecer, dando mais agilidade nos encaminhamentos”, avalia.
Atenção ao egresso
De acordo com a juíza Gisele Oliveira, coordenadora do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Espírito Santo, o investimento em uma política robusta para egressos via Escritório Social é fundamental para reverter o agravamento do quadro penal no país, incluindo a reincidência. “Nosso sistema é composto basicamente de pessoas que não tiveram acesso a políticas públicas adequadas, como educação, cultura, saúde, esporte, e acabam parando no sistema prisional onde todas as dificuldades são ampliadas pelo estigma e pelo preconceito. A disseminação da ideia do Escritório Social em todo o Brasil vai fazer face a esse desafio”, avalia.
Para a juíza Graciela Henriquez, que atua na Vara de Execuções Penais de Vila Velha, a dificuldade que o egresso encontra ao retornar para a sociedade é notória e é preciso que os atores ligados à execução penal se unam para superar esse quadro, algo observado durante o mutirão promovido pelo CNJ. “É necessário o envolvimento de todas as instituições que atuam na execução penal, a fim de juntos enfrentramos os desafios estruturais do sistema. Nesse sentido, é louvável a iniciativa do Conselho Nacional de Justiça ao idealizar e realizar o 1o Mutirão Carcerário Eletrônico, em parceria com a Defensoria Pública, com o Ministério Público e a Secretaria de Justiça a fim de buscar alternativas inovadoras e criativas visando tornar mais eficiente e justo o sistema prisional”, avalia.
*Nome alterado para preservar a identidade.
Débora Zampier
Agência CNJ de Notícias