Ter ao seu redor um ambiente acolhedor nos primeiros anos de vida, com proteção, afeto, cuidado e estímulo, favorece o desenvolvimento da criança, mas também melhora a saúde emocional do adulto em formação. A afirmação foi feita na quarta-feira (1º/9) pelo professor da Universidade de Sevilha Jesús Palacios, durante o 1º Encontro do Sistema de Justiça: A Prioridade do Acolhimento Familiar. O evento trata da importância de se acolher as crianças afastadas de suas famílias biológicas por decisão judicial em novos núcleos familiares, como é conhecida a prática do acolhimento familiar.
“Para quem não pode crescer na sua família, a alternativa deve ser outra família, o desenvolvimento seja estimulado, e em quem a relação seja personalizada, saudável, impregnada de afeto e carinho. É nesse contexto que se produzirão os vínculos emocionais significativos, que são a base da nossa saúde mental posterior”, afirmou Palacios, que se especializou na psicologia do desenvolvimento e em políticas públicas.
De acordo com o estudioso, um entorno protetor e a estimulação personalizada da criança em jogos de ação e reação completam os conteúdos do cérebro infantil. É assim que uma criança adquire a linguagem de maneira mais completa, com mais recursos e competências, por exemplo. E o processo de desenvolvimento emocional é semelhante, pois é otimizado quando acontece em um contexto de estabilidade, em que a criança pode interagir com pessoas significativas, com rotinas de atividades, como o banho e as refeições.
“Os vínculos emocionais iniciais são a base das nossas relações emocionais durante a vida. No acolhimento institucional (mais conhecidos no Brasil como abrigos), os cuidados coletivos não têm a mesma capacidade de desenvolver esses vínculos, em função da rotatividade das equipes. As mudanças de turnos dificultam a personalização da aprendizagem”, afirmou o professor da Universidade de Sevilha.
Família acolhedora
O serviço de acolhimento familiar oferece a crianças afastadas do convívio de pai e mãe pela Justiça a possibilidade de viver na casa de uma família, temporariamente. As pessoas que se dispõem a acolher uma criança ou adolescente em situação de risco é cadastrada e autorizada pela Justiça a cuidar dela entre seis meses a dois anos, com remuneração do estado. O período é uma transição para retornar a sua família de origem ou para ser encaminhada à adoção – a lei brasileira impede a família acolhedora de adotar essa criança.
O 1º Encontro do Sistema de Justiça: A Prioridade do Acolhimento Familiar é promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – por meio do Fórum Nacional da Infância e Juventude (Foninj) – em parceria com o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). A proposta é sensibilizar magistrados, promotores e defensores públicos para o tema do acolhimento familiar, sua importância e os desafios da transição do modelo de acolhimento atual, prioritariamente institucional.
“Pretende-se com esse especializado e qualificado seminário, discutir as principais e relevantes temáticas para aumentar a implantação do acolhimento familiar no Brasil. Trata-se de uma modalidade de acolhimento provisória, prioritária ao acolhimento institucional e deve ser estimulada. É necessário que tenhamos sempre em vista a premência de se consagrar o acesso aos direitos fundamentais, em especial a prioridade absoluta prevista no artigo 227 da Constituição Federal”, afirmou a conselheira do CNJ e presidente do Foninj, Flavia Pessoa.
A opção pelo acolhimento só acontece quando a Justiça conclui que a criança ou adolescente está em situação de risco, teve direitos violados e não foi possível colocá-la em ambiente seguro, como na casa de um parente. Esse tipo de ambiente, de negligência e abuso, acaba forçando-as a serem acolhidas, o que e prejudica o desenvolvimento emocional do ser humano em formação, de acordo com o psicólogo espanhol, que também pesquisa o campo da psicologia evolutiva.
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“(Em ambientes assim), na ausência de pessoas de referência, com vínculos desorganizados, caóticos e patológicos, a criança aprende o medo, a desconfiança. Se ela não pode crescer na sua família e os cuidados coletivos (institucional) não são desejáveis, a melhor alternativa é crescer em outra família em que ela possa desaprender tudo de negativo e aprender o contrário: proteção, afeto, cuidado, estímulo, reciprocidade. Aqueles que não podem estar em sua família precisam de outra família”, afirmou Jesús Palacios.
Lentidão
O Brasil possui pouco mais de 29 mil crianças e adolescentes em serviços de acolhimento, mas apenas 4,9% delas em acolhimento familiar, de acordo com o Censo do Sistema Único da Assistência Social (SUAS). Na abertura do encontro, o conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Otávio Luiz Rodrigues Jr, citou o dado para ilustrar a lentidão do Estado brasileiro em priorizar o acolhimento familiar para lidar com situações em que crianças e adolescentes são obrigadas a viver longe dos pais. O modelo do acolhimento familiar foi instituído no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 2009.
“É um estado de coisas que causa, no mínimo, uma perturbação, pois é um conflito com o artigo do ECA que estabeleceu há quase 12 anos uma iniciativa a ser estimulada por órgãos estatais. Para isso, a lei previu uma série de instrumentos, como assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, além de uma gama de possibilidades de atuação estatal, a implantação dessa política pública e o direcionamento de recursos humanos para essas possibilidades”, afirmou o conselheiro.
O secretário especial de Programas, Pesquisas e Gestão Estratégica, juiz Marcus Livio Gomes, destacou o que o CNJ tem feito para estimular o acolhimento familiar, como a campanha “Se Renda à Infância” e o Prêmio Prioridade Absoluta, realizados em 2021. “Ressaltamos a importância do trabalho articulado com os serviços de acolhimento familiar, que fazem parte do SUAS, e destacamos como a metodologia de família acolhedora desenvolvida pelo Instituto Fazendo História, que foi a vencedora do Prêmio Prioridade Absoluta, na categoria Empresa e Sociedade Civil Organizada.”
O juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça Gabriel Mattos apontou razões históricas, institucionais e culturais para a “tradição brasileira de orfanatos” que existe no país e condena milhares de jovens aos abrigos institucionais. De acordo com Mattos, magistrados e magistradas em início de carreira são removidas para localidades longínquas, com poucas condições estruturais para atender a demandas de infância com a devida prioridade. “Tolhidos pela urgência diária e corriqueira, são massacrados por frequentes pedidos de liminar, homologações de flagrante, audiências de custódia, advogados clamando por urgência em inúmeros processos, tendo de cuidar ao mesmo tempo de crianças e adolescentes em situação de risco – crianças, em sua maioria nessas diminutas comarcas, desprovidas de advogado ou defensor público.”
O 1º Encontro do Sistema de Justiça: A Prioridade do Acolhimento Familiar continua nesta quinta-feira (2/9), a partir das 8h45. A programação inclui palestras da coordenadora da Coalizão pelo Acolhimento Familiar, fundadora do Instituto Fazendo História, e da representante da Fundação Bernard van Leer no Brasil, Claudia Vidigal e de promotores e juízes que tratarão de temas como atender ao melhor interesse da criança, estratégias para implantação do serviço de família acolhedora e boas práticas.
Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias
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