A transformação do conceito de proteção de dados em direito fundamental e as implicações da mudança pautaram as discussões na manhã de quarta-feira (15/6), no seminário “O Direito Fundamental à Proteção de Dados e a LGPD”, promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O tema mobiliza as comunidades jurídica e acadêmica desde a edição da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/18) e sobretudo depois da promulgação da Emenda Constitucional 115, em fevereiro deste ano, que acrescentou aos direitos fundamentais listados na Constituição Federal o “direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais”.
O momento é de “efervescência normativa”, de acordo com o conselheiro Bandeira de Mello, que ocupa o cargo de Encarregado de Proteção de Dados do CNJ. Na última segunda-feira (13/6), uma Medida Provisória alterou um pilar da legislação, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), que teve consolidada a sua formatação. A entidade responsável por zelar pelo mais novo direito fundamental da Constituição deixou, por exemplo, de ser vinculada à Presidência da República e terá na sua estrutura administrativa uma Procuradoria.
“Anteontem, tivemos a MP 1.124, que também acaba por trazer seus efeitos sobre o tema proteção de dados, uma vez que elevou a ANPD ao status de autarquia de natureza especial, numa caracterização com personalidade jurídica, com Procuradoria, certamente já preparando o órgão para ter atuação, inclusive judicial, que ocorrerá com a imposição de sanções e o desenvolvimento natural de suas atividades”, afirmou Bandeira de Mello, que também coordena no CNJ o Comitê Gestor da LGPD.
História
O direito à proteção de dados era reivindicado mesmo antes da promulgação da Emenda Constitucional 115, de acordo com o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Ricardo Villas Bôas Cueva, palestrante do primeiro painel do seminário, “O direito fundamental à proteção de dados”, que teve como presidente da mesa o conselheiro Marcello Terto e Silva. Além de figurar na doutrina, o reconhecimento a esse novo direito tem um marco em maio de 2020, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou uma ação direta de inconstitucionalidade sobre a obrigação de as operadoras de telefonia celular transferirem seus dados ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em nome do combate à pandemia de Covid-19.
“O STF reverteu entendimento histórico de 30 anos, de reconhecer o direito fundamental à proteção de dados com base nos incisos 10 e 12 do artigo 5º da Constituição Federal. Foi um longo percurso, porque até então prevalecia uma interpretação cristalizada nos anos 1990 no Supremo, segundo a qual o sigilo de dados era um sigilo sobre a transmissão de dados, e não sobre os dados em si mesmos. Isso acabou, de algum modo, por congelar no Supremo uma visão de que não haveria entre nós um direito fundamental à proteção de dados – ou uma autodeterminação informativa – dotado de autonomia, a despeito das evidências em contrário”, disse o ministro.
Uma das principais evidências contrárias a essa interpretação do STF, segundo o ministro Villas Bôas Cueva, foi a decisão de 1983 do Tribunal Constitucional da Alemanha que, após analisar o censo populacional daquele país, inferiu dos dispositivos da Constituição alemã existir um direito fundamental à autodeterminação informativa. O entendimento influenciou as cartas magnas de várias nações europeias e a Carta Europeia de Direitos Humanos, de 2000, que incluiu o direito fundamental à autodeterminação informativa.
Leia também: Publicidade garante mais qualidade às decisões judiciais, afirmam magistrados
Influência da UE
Atualmente, o regulamento de inteligência artificial e o ato legislativo sobre mercados digitais em formulação pela União Europeia (UE) tendem a ser referências para o Brasil, que debate atualmente proposta de marco legal da inteligência artificial no Congresso Nacional. Para o advogado alemão Julian Monschke – dos especialistas no tema que participaram de um painel específico sobre o assunto no seminário -, as duas normativas da UE se destacam pela garantia do direito ao acesso às informações, pelo controle da informação pelo cidadão e pela definição de multas a empresas que descumprirem regras e violarem direitos de privacidade.
Especialista em direito e tecnologia, Lucas Mayall comentou que as propostas de regulação em curso na União Europeia são uma oportunidade para o Brasil verificar quais questões estão sendo valorizadas e quais preocupações perpassam o avanço da inteligência artificial. Entre esses temas, constam excessos de regulação, disruptividade e inovação, atuação dos Estados Unidos e da China e regras para evitar concentração de empresas em mercados digitais, não somente do ponto de vista da concentração em si como pela influência que as grandes bigtechs exercem em outros mercados.
Diante da expansão da internet no Brasil – cerca de 60% da população tem acesso à internet –, é preciso garantir a segurança dos dados pessoais, de acordo com o advogado especialista em direito digital, Matheus Puppe. “Com a expansão da tecnologia e a velocidade da troca de informações, o direito se ajusta aos desdobramentos nacionais e internacionais de forma a seguir garantindo nossos direitos fundamentais como reflexo dos nossos anseios agora captados por algoritmos e que dá voz ao coletivo por meio das redes sociais.”
Para Fabrício de Mota Alves, integrante da comissão de juristas do Senado para o marco regulatório de inteligência artificial, o Brasil possui um tripé relevante formado pelo Marco Civil da Internet, pela Lei de Acesso à Informação e pela LGPD, mas é necessário avançar na fiscalização dos excessos, proteção dos indivíduos e na qualidade da informação.
Implicações
O presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Humberto Martins, lembrou que as “possibilidades infinitas” dos dados pessoais disponíveis nas redes sociais não podem ameaçar o direito à proteção de dados no meio digital e a dignidade humana, assegurados constitucionalmente. “Reconheço expressamente que os dados das pessoas encontradas na internet fazem parte da essência humana, como extensão do próprio corpo. Daí a importante proteção que veio complementar a garantia regulamentada na LGPD, que coloca barreira fundamental no tratamento dos dados encontrados na internet, dando correção ao princípio maior da dignidade humana, no respeito dos direitos de cada um, homens e mulheres, em igualdade.”
De acordo com a professora da Universidade de Brasília (UnB) Laura Schertel Mendes, ao prever necessidade de base legal, amparada na vontade ou no consentimento, para tratar dados pessoais, o direito fundamental à proteção das informações minimiza riscos tanto à individualidade e à dignidade da pessoa humana, mas também protege a democracia. “A proteção de dados não pode ser instrumentalizada por políticos que escondem suas agendas públicas, sob o pretexto de observar a LGPD. Órgãos públicos escondendo relatórios ou dados relevantes para público também não podem usar a LGPD dessa forma. Aplicar a proteção de dados corretamente evita mal-entendidos.”
O Brasil está no caminho para se transformar em um estado democrático de direitos digital, segundo o professor da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) Ingo Sarlet pela Ludwig. No entanto, a centralização excessiva dos dados, o controle informacional pelo poder público e o compartilhamento de informações pelos três poderes podem comprometer o direito fundamental à proteção de dados. De acordo com o famoso professor da Universidade Humboldt de Berlim, Luiz Grecco, “se saber é poder, o Estado não pode saber tudo, porque o Estado com informações ilimitadas também tem um poder ilimitado”.
Texto: Luciana Otoni e Manuel Carlos Montenegro
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias
Reveja o seminário no canal do CNJ no YouTube
Veja mais fotos no Flickr do CNJ
(use as setas à esquerda e à direita para navegar e clique na foto para a acessar em diferentes resoluções)