O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deu início, na última sexta-feira (8/7), ao evento Caminhos Literários no Socioeducativo – Pelo Direito à Leitura. Essa é primeira jornada de promoção da literatura e da leitura entre adolescentes em medidas socioeducativas de privação de liberdade. O evento, transmitido pelo canal do CNJ no YouTube e também para quase 60 unidades do socioeducativo pelo país, foi acompanhado por 2 mil pessoas. A programação segue ao longo do mês, com convidados e convidadas e participação ativa de adolescentes em privação de liberdade abordando temas como rimas e poesia, teatro e música.
Para o juiz auxiliar da Presidência do CNJ com atuação no Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e no Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ, Fernando Mello, fomentar a leitura nas unidades socioeducativas incentiva o caráter pedagógico da intervenção institucional. “A leitura se encontra na intersecção entre o direito à cultura, o direito à educação, o direito ao lazer e aos meios de comunicação social.”
O juiz ainda informou que está sendo realizado um censo inédito para mapear as condições de acesso ao livro e a leitura no sistema socioeducativo e no sistema prisional. “A partir do resultado desse censo será possível estruturar uma política nacional de acesso à leitura em pessoas em privação de liberdade, com base em evidências.” As ações do CNJ no campo socioeducativo estão sendo desenvolvidas com apoio técnico do programa Fazendo Justiça, parceria com o Programa das Nações Unidas para do Desenvolvimento (Pnud) para incidir em desafios no campo de privação de liberdade.
Poeta, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Marco Lucchesi afirmou que o diálogo entre adolescentes e especialistas torna as iniciativas mais produtivas, citando como exemplo projeto que acompanhou em uma unidade socioeducativa no Rio de Janeiro que propunha a construção de uma cidade. “Essa cidade pensada pelos meninos era altamente complexa, com acessibilidade, com coleta seletiva e diversos outros princípios de uma sociedade que muitas vezes os exclui.”
A Agenda 2030 forneceu um plano para a construção de um mundo compartilhado e sustentável, segundo a coordenadora da Unidade de Governança e Justiça para o Desenvolvimento do Pnud, Moema Freire. “Não podemos adentrar esse debate sobre desenvolvimento sustentável sem que seja considerada a promoção e a garantia dos direitos para adolescentes e jovens envolvidos em atos infracionais, população que é formada em grande parte por jovens em situação de grande vulnerabilidade.”
A palavra escrita e a palavra falada
Ressaltando a importância da palavra falada, a atriz, poeta e escritora Roberta Estrela D’Alva narrou sua experiência de trazer o slam para o Brasil em 2008. Essa é uma espécie de batalha de poesias com três regras básicas: os poemas devem ter autoria própria, não deve haver acompanhamento musical e a duração máxima é de três minutos. Esse processo foi tratado também em no documentário Slam: Voz de Levante, disponível para exibições coletivas.
“Não estamos falando que o livro não é importante, ou que a escrita não seja importante. É maravilhoso termos a palavra escrita. Mas se apenas a escrita for considerada, não vamos aproveitar a cultura africana, a cultura popular brasileira ou mesmo os trovadores europeus”, explicou Roberta Estrela.
Maíra Brito, que é jornalista, escritora, professora e doutoranda em direitos humanos pela Universidade de Brasília, comentou como foi sua transição do trabalho em redações jornalísticas para a academia. “Não foi simples, eu me arrisquei. E porque eu estou falando sobre isso? É para que vocês tenham coragem, de ler um livro até o final, de escrever e de se arriscar.” Fruto da sua dissertação de mestrado, Maíra Brito publicou o livro “Não. Ele não está”, com histórias de mães que perderam seus filhos por conta da violência urbana.
Na avaliação da jornalista, a leitura pode ser uma ferramenta importante para reescrever histórias. “Não é uma ação que vai definir o resto da sua vida. A gente pode recomeçar sempre”, falou aos adolescentes que acompanhavam o evento.
O direito à leitura nas unidades socioeducativas
Durante a tarde, mais dois debates foram realizados. O primeiro reuniu magistrados e pesquisadores sobre o tema da leitura nas unidades socioeducativas. Juiz da Vara Especial da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), Jayme Garcia apontou a falha do Estado em promover políticas de cidadania a esse público. “Durante as medidas socioeducativas esses jovens têm acesso à cultura e à educação que não tiveram antes, já que só conheceram o Estado como força punitiva.”
O cenário é ainda completado, segundo o juiz, com a ausência de equipamentos públicos que permitam aos adolescentes continuarem em contato com a leitura após as medidas socioeducativas. “É muito raro uma unidade de liberdade assistida com bibliotecas.”
A professora da Universidade Federal de São Carlos Elenice Onofre acredita que a análise de medidas socioeducativas pelo olhar educacional deve se afastar dos conceitos de ressocialização, reeducação ou reinserção. Coordenadora do Educarceres – Núcleo de Investigação e Práticas em Educação nos Espaços de Restrição e Privação de Liberdade, ela entende que este público nunca esteve fora da sociedade.
A pesquisadora na Universidade Estadual da Bahia e professora de Educação de Jovens e Adultos para unidades que atendem adolescentes em medidas socioeducativas em Salvador Adriana Lopes comentou sobre a relação da legislação e as diretrizes da educação geral e a dos jovens em conflito com a lei.
Por fim, a professora Vanusa de Melo apresentou o projeto Escrevivendo a Liberdade. Coordenado por ela e vinculado à Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a iniciativa estimula a leitura e a escrita de adolescentes em medidas socioeducativas e familiares destes. “Trabalhamos com o conceito da literatura como um direito fundamental e seguindo os princípios da escritora Conceição Evaristo, sobre escrevivência, com o objetivo de tornar a literatura mais diversa e plural.”
Projetos bem sucedidos
A programação foi encerrada com o relato sobre cinco projetos bem sucedidos de promoção à leitura no sistema socioeducativo de diversas regiões no pais. A primeira ação, o Clube de Leituras, foi apresentada pelo coordenador do Centro de Socioeducação II, em Londrina (PR), Amarildo Paula Pereira. Desenvolvido pelo Departamento de Administração do Socioeducativo do Paraná, a iniciativa foi premiada no Prêmio Prioridade Absoluta do CNJ no ano passado.
O projeto Tecendo Caminhos é realizado no Acre em parceria com a ONG Elas Existem, que também desenvolve ações no Rio de Janeiro. A arte-educadora da Elas Existem, Nayhá Soares, e o professor de informática nas unidades do Socioeducativo de Rio Branco, Eneias Marques, falaram sobre os desafios para superação de questões tecnológicas, já que a ação é realizada parcialmente à distância conectando Rio de Janeiro e Rio Branco.
De Caruaru (PE), veio a experiência do Leituras, Diálogos e Relações Sociais, um projeto voltado para adolescentes cumprindo medidas provisórias, em que os jovens permanecem até 45 dias. A analista da Fundação de Atendimento Socioeducativo de Pernambuco, Maurinúbia Moura, relatou como foi a construção da biblioteca nas unidades do interior do estado e como as rodas de conversa ajudaram a estimular a leitura por parte dos jovens. “A maioria nunca havia lido um livro na vida.”
Os dois últimos projetos são da região Norte no Brasil. A professora assistente da Universidade de Federal do Amazonas (UFAM) e integrante do grupo Educarceres, Edla Caldas, apresentou o projeto desenvolvido durante o seu mestrado na UFAM com as adolescentes e jovens do Centro Socioeducativo de Internação Feminina de Manaus de Manaus, usando tanto referências de literatura, música, cinema e da cultura e expressões locais, o projeto estimulava a produção artística das jovens.
E o doutorando em Ciências da Informação na Universidade Federal da Bahia, Bruno Almeida, apresentou o Projeto Literário, desenvolvido em Porto Velho/RO. Durante três meses o livro Quarto do Despejo, de Carolina Maria de Jesus, foi trabalhado com grupos de meninos e meninas em medidas socioeducativas da cidade. Os jovens foram estimulados a produzir poesias e contos após a leitura e conversa sobre o livro, apontando semelhanças e diferenças com a realidade que eles vivenciam.
Texto: Pedro Malavolta
Edição: Débora Zampier
Agência CNJ de Notícias
Reveja o evento no canal do CNJ no YouTube
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