Conselheiro Joaquim Falcão analisa a revolução causada pela tecnologia no patrimônio musical

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Em artigo publicado nesta quinta-feira (21/08) pelo jornal Correio Braziliense, o conselheiro Joaquim Falcão fala sobre a mudança do conceito de preservação da cultura brasileira. Cita como referência dessa mudança o projeto desenvolvido pelo Sesc de São Paulo com a Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) do Rio que, após a incorporação do acervo musical de Noel Rosa no domínio público, disponibilizará à sociedade o conteúdo de formas diversas.

Em artigo publicado nesta quinta-feira (21/08) pelo jornal Correio Braziliense, o conselheiro Joaquim Falcão fala sobre a mudança do conceito de preservação da cultura brasileira. Cita como referência dessa mudança o projeto desenvolvido pelo Sesc de São Paulo com a Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) do Rio que, após a incorporação do acervo musical de Noel Rosa no domínio público, disponibilizará à sociedade o conteúdo de formas diversas.

"A associação entre tecnologia e preservação do patrimônio musical é simples e revolucionária. Trata-se de regravar obras de Noel de maneira a segmentar um simples samba em seus vários componentes: a letra cantada, o batuque dos instrumentos de percussão, a melodia do piano, o segmento dos sopros e assim por diante. Essa segmentação seria disponibilizada eletronicamente para download a qualquer um – jovens sobretudo – que quiser reutilizá-la, reinventá-la, misturá-la, alterá-la, remixá-la.

Para ele, o samba é o conjunto dos segmentos eletrônicos. "Multiplicam-se os que têm Noel como fonte de inspiração. Ou seja, Noel deixa de ser o inventário bem guardado do passado. Passa a ser matéria-prima viabilizadora do futuro." Veja abaixo o artigo na íntegra.

Patrimônio cultural e tecnologia da informação

Joaquim Falcão*

 A associação entre o domínio público do patrimônio musical brasileiro e a tecnologia de informação vai mudar, ou melhor, já está mudando todo o conceito de preservação da cultura brasileira. É caminho sem volta, ainda que muito pouco trilhado. Neste ano, por exemplo, entram em domínio público os sambas do cariocamente brasileiro Noel Rosa. São 71 anos desde sua morte. Verdadeiro patrimônio da cultura brasileira. Nascido em Vila Isabel, aluno de elite do prestigioso católico Colégio São Bento, pecador contumaz, boêmio da Lapa, zona de prostituição de então, fez dezenas de sambas. Morreu cedo, com apenas 26 anos.

 Entre seus sambas, vários são clássicos nacionais: Com que roupa, Fita Amarela, Cansei de Implorar, Palpite Infeliz. Foi sambista sociólogo, apreendeu e descreveu a alma da classe média urbana. As letras de seus sambas são verdadeiros insights de psicologia social. Descrevem hábitos, humores e sentimentos, muitos transtemporais: "Quem acha, vive se perdendo"; "quem é você, que não sabe o que diz"; "meu Deus do céu, que palpite infeliz!"; "você não viu porque não quis". E por aí vamos.

 A associação entre tecnologia e preservação do patrimônio musical é simples e revolucionária. Trata-se de regravar obras de Noel de maneira a segmentar um simples samba em seus vários componentes: a letra cantada, o batuque dos instrumentos de percussão, a melodia do piano, o segmento dos sopros e assim por diante. Essa é a tarefa do projeto Noel Rosa Domínio Público, do Sesc São Paulo com a Escola de Direito da FGV do Rio, que une tecnologia da informação e direito de interesse do público.

 Essa segmentação seria disponibilizada eletronicamente para download a qualquer um – jovens sobretudo – que quiser reutilizá-la, reinventá-la, misturá-la, alterá-la, remixá-la. O samba é o conjunto dos segmentos eletrônicos. Multiplicam-se os que têm Noel como fonte de inspiração. Ou seja, Noel deixa de ser o inventário bem guardado do passado. Passa a ser matéria-prima viabilizadora do futuro.

 Os novos sambistas, os novos músicos, os saudosistas também, vão poder ser parceiros de Noel: de sua melodia, de seu ritmo, de sua letra. Noel bossa nova, Noel funk, Noel rock, Noel hip-hop. Noel pode ser apropriado pela criação, reconstrução e construção de todos. Isso muda totalmente o conceito de preservação patrimonial. Preservação não mais como restauração, mas como reinvenção do passado. Memória que se prolonga, se reforça e se traduz. Em vez de manutenção, como palavra de ordem, transformação e recriação. O Brasil se acumula sendo o que foi e será. A cultura se solidifica, porque se muda, sendo. Nossa identidade fica mais continuada sem estar imóvel. Nossa música, mais plural.

 Altera-se profundamente a relação do patrimônio com o indivíduo e a relação entre as gerações de ontem, de hoje e de amanhã. As gerações, agora, dialogam entre si. Interagem. Patrimônio transgeracional. Não mais um datum, mas um constructo. Refazer. De imobilização, passa a ser mobilização. Patrimônio interativo: o ontem se faz amanhã, hoje.

 O conjunto da obra de Noel bem que poderia, inclusive, ser registrado como patrimônio imaterial da cultura brasileira, ou carioca, ou ambas, pelo Iphan, do governo federal, ou pelo Inepac, do Rio de Janeiro.

 A tecnologia rompe e envelhece algumas dicotomias, como entre ruptura e seqüência. Entre unidade e pluralidade. Entre cultura eliminatória e cultura somatória. A tecnologia permite que a obra de Noel, sem deixar de ser o que foi, continue a ser o que poderia ter sido. Vença o nosso tempo e a sua solidão. Seja, também, coesão social. Mais ainda, multiplica-se Noel. Não mais um apenas, mas vários, embora esse um permaneça nos múltiplos Noéis. In pluribus, unum. O que mais pode desejar uma cultura cada vez mais plural como a nossa?

 

* Conselheiro do CNJ e diretor  da Escola de Direito da FGV