O Sistema Nacional de Pareceres e Notas Técnicas (e-NatJus) é ferramenta de apoio imprescindível na Justiça para a análise dos processos de saúde especialmente nos casos envolvendo o financiamento público de tratamentos de câncer a partir de novas tecnologias. A importância no uso dessa ferramenta digital do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por magistrados e magistradas foi destacada na V Jornada de Direito da Saúde especificamente nos painéis que debateram a judicialização dos tratamentos oncológicos e obstinação terapêutica.
Organizado pelo CNJ, a V Jornada de Direito da Saúde foi realizada no Tribunal de Justiça da Bahia na quinta e sexta-feira (18 e 19/8), com ênfase na busca de sinergia entre órgãos públicos e profissionais da área médica e do direito para o enfrentamento à crescente judicialização dos temas da saúde.
Na análise específica em tratamentos oncológicos, especialistas do direito e da área médica expuseram como o apelo das novas tecnologias abrangendo medicamentos, equipamentos e terapias tem ampliado o número de ações que reivindicam o financiamento do SUS para tratamentos que, em vários casos, são de alto custo e sem eficácia efetivamente comprovada.
A juíza federal e coordenadora do Comitê Estadual de Saúde do Paraná, Luciana da Veiga Oliveira, apresentou um panorama da questão informando que o julgamento dos processos envolvendo medicamentos para tratar câncer e o financiamento público passa pelo “Tema 106” do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que define os requisitos e a adequação aos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do SUS.
É uma análise que se aprofunda em questões técnicas e requer, também, a avaliação de custo- efetividade do tratamento e de comparativos entre terapias paliativas x terapias curativas e o ganho em sobrevida em termos de progressão da doença. “São discussões trazidas para o Poder Judiciário e que os juízes não têm, sozinhos, elementos técnicos para enfrentar. E mesmo sobre o custo-efetividade, não temos um limiar regulamentado para fazer essa análise no Judiciário. Esse é o panorama que enfrentamos e precisamos muito de apoio técnico, porque o magistrado pode ser tudo, menos ingênuo. Não podemos ser levados ao ponto de ficar deferindo medicamentos desnecessários, sem evidência científica, sem comprovação de efetivo ganho porque estamos lidando com dinheiro público”, afirmou Luciana da Veiga Oliveira.
Em termos do custo público da judicialização, ela citou a diferença na compra de medicamentos usados em tratamentos de câncer e citou como exemplo o Rituximab em ação envolvendo o tratamento de 46 pacientes no Paraná. Quando esse medicamento é adquirido por meio de sentença judicial, a compra é feita a partir de preços da tabela da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamento (Cmed) gerando uma diferença de R$ 8 milhões em relação ao preço pago quando o mesmo medicamento é adquirido em compra por escala feita pela União ou pelos estados. “É muito dinheiro público que a gente acaba perdendo.”
Esse posicionamento foi reforçado pela médica e membro do Comitê Executivo do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (Fonajus) Clarice Petramale, que presidiu a mesa de debates. Ela informou que a oncologia gera um impacto financeiro expressivo, respondendo por grande parte da judicialização da saúde no país citando como exemplo também o Paraná, onde essas ações representam 40% dos processos na área da saúde.
“A gente vê o esforço da área do direito em tentar compreender essa questão complexa. E se eu pudesse escolher uma área para o e-NatJus atuar seria na fase pré- processual da oncologia, junto com os técnicos do Ministério da Saúde e a oncologia do hospital, porque essa área pesa muito no bolso de todos e onera muito o direito também.”
O médico e professor Luis Fernando Moreira abordou o tema da perspectiva da medicina informando os diferentes tipos de câncer e estágios da doença, bem como as incertezas no tratamento a partir de novas tecnologias sem comprovada eficácia e de alto impacto nos orçamentos públicos. Para o especialista, a cobertura geral e irrestrita é incompatível com a sustentabilidade da saúde pública e dos planos de saúde, implicando em aumento de custos no limite da capacidade do atendimento a outros indivíduos no sistema.
A solução da questão passa, de acordo com ele, por uma visão mais crítica, técnica e pragmática e menos enviesada nos resultados propagados por novos medicamentos e tratamentos. “Não podemos dar todo tipo de tratamento a todo e qualquer paciente que demanda isso e comprometer a assistência à saúde de todos os outros, seja de qual sistema for. Se nós levarmos isso à exaustão, certamente vamos comprometer de maneira insustentável a saúde seja pública, privada ou de um indivíduo”, concluiu Luis Fernando Moreira.
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Obstinação terapêutica
Os especialistas trataram também do tema da obstinação terapêutica, no qual a Justiça é acionada a garantir tratamento médico a pacientes sem chances reais de recuperação e para os quais o recomendável seriam os cuidados paliativos. Assessor jurídico do Conselho Nacional de Secretários de Saúde e integrante do Comitê Nacional do Fonajus, Leonardo Moura Vilela comentou que essa é uma questão cada vez mais presente tanto na prática médica quanto na judicialização da saúde.
São, conforme expôs, situações que envolvem a dignidade e o sofrimento do paciente e dos familiares, gastos para os sistemas de saúde público, privado e suplementar e leitos escassos de UTI que poderiam ser ocupados por pessoas com reais chance de recuperação. “A obstinação terapêutica, a distanásia, é, muito mais que prolongar a vida, é postergar a morte com sofrimento, agonia e com gastos desnecessários que isso implica e é tema extremamente importante”, ponderou Vilela.
As questões éticas que envolvem o assunto foram abordadas pela a assessora jurídica do Ministério Público do Paraná, Fernanda Schafer. Na opinião dela, as novas tecnologias na área médica são importantes para a evolução da medicina e em termos do aumento da expectativa de vida, mas trazem consigo a ilusão de prolongamento da vida, gerando um contexto de negacionismo da morte com impacto na judicialização.
A representante do MPPR disse que a obstinação terapêutica retira dignidade do paciente em seu fim de vida se constituindo em uma resposta moral da medicina e da família par algo que não conseguem controlar, que é a morte. Na sequência, e citando autores especializados no tema e a legislação em vigor no Brasil, ela argumentou que a obstinação terapêutica não é um direito. Como amparo legal a essa questão, Fernanda Schafer citou seis regulamentos, entre os quais o artigo 41 do Código de Ética Médica, a Resolução 2.232/2019 do Conselho Federal de Medicina e a Resolução de Consolidação n. 1/2021 do Ministério da Saúde.
O mais indicado para enfrentar as situações de pacientes sem chances reais de cura, pontuou Leonardo Vilela, é o SUS fazer investimentos na rede pública em cuidados paliativos destinados a dar mais conforto e acolhimento a essas pessoas em seu fim de vida. Ele disse que isso é o ideal a ser feito considerando o inevitável envelhecimento da população brasileira.
Participaram dos painéis que abordaram a judicialização em tratamentos oncológicos e em obstinação terapêutica também a coordenadora de avaliação de tecnologias em Saúde da Unimed, Silvana Márcia Bruschi Kelles, e a diretora-geral do Instituto Nacional do Cancer (Inca), Ana Cristina Pinho.
Texto: Luciana Otoni
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias
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