Justiça Itinerante vai aos quilombolas e pantaneiros do Centro-Oeste

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O município de Laguna Carapã, a quatros horas da capital Campo Grande/MS, foi um dos que ficou marcado na história ao ter sua população envolvida no conflito mais sangrento entre países sul-americanos, a Guerra do Paraguai (1864-1870).

E foi justamente lá que o juiz Luiz Felipe Medeiros Vieira se deparou com uma situação desumana e inesperada. Em uma audiência de divórcio, o marido se recusou a fazer o procedimento legal, deixando a mulher aos prantos. Ao conversar com ela, no entanto, o juiz descobriu que o caso ia muito além de uma situação de divórcio: a mulher estava sendo submetida a agressões e torturas pelo marido, como ser privada de alimentos e ser obrigada a dormir no chão. 

Situações como essa fazem parte da rotina de juízes e servidores que se deslocam pela Região Centro-Oeste do país para levar à população das cidades do interior o acesso à Justiça. Programas itinerantes comandados pelos Tribunais de Justiça mudam a realidade da população garantindo, por exemplo, que crianças ilhadas no pantanal tenham acesso à escola, ou ainda atender à população kalunga situada em um quilombo de difícil acesso no coração de Goiás. 

Para a conselheira do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Daldice Santana, presidente da Comissão de Acesso à Justiça e Cidadania do órgão, não são raras as vezes em que se pode identificar que a população é mais carente onde há mais distanciamento físico do Poder Judiciário e de outros serviços públicos.

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A atuação de magistrados na Justiça Itinerante, uma política incentivada pelo Conselho, é regulamentada pelo Provimento n. 20/2012 da Corregedoria do CNJ. “A Justiça Itinerante é movida pela criatividade, pelo empenho e pela dedicação de juízes, servidores públicos e colaboradores, representando a ideia, como diria a ministra Cármen Lúcia [presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do CNJ], de um ser humano cuidando de outro ser humano. É um trabalho que dignifica a função de todas as pessoas envolvidas”, diz a conselheira Daldice. 

Demandas de família do Mato Grosso do Sul

No caso da descoberta de agressão e tortura de uma mulher após uma audiência fracassada para homologar o divórcio, o juiz Luiz Felipe Medeiros Vieira concedeu a medida protetiva para afastar o marido de casa e fixou uma pensão alimentícia. “Ela não tinha orientação do que fazer e não existe delegacia especializada da mulher no interior. Fiquei imaginando que, se a gente não estivesse ali, por quanto tempo ela ainda seria torturada?”, diz o juiz Vieira, responsável por coordenar a carreta de Justiça Itinerante que percorre os cerca de 30 municípios do interior do Mato Grosso do Sul que não contam com varas de Justiça.

As principais demandas da chamada carreta da Justiça – na verdade, um caminhão de grande porte com estrutura de fórum, que comporta um gabinete para juiz e um cartório com quatro mesas  são na área de família. São divórcios, conversões de união estável em casamento, reconhecimentos de paternidade, entre outros procedimentos que são pedidos pela população que não tem condições de se deslocar até outra comarca para resolver essas pendências. “O objetivo é dar acesso à justiça a pessoas que não podem, por exemplo, pagar cem reais e percorrer 50 quilômetros para resolver suas questões”, diz o magistrado. 

A caravana itinerante do TJMS iniciada no segundo semestre de 2016 tem realizado ainda diversos casamentos, inclusive homoafetivos, pelo interior. “A população do interior é mais conservadora e é interessante divulgar que esses casamentos também são feitos até para combater o preconceito”, diz o juiz Vieira. 

Crianças ilhadas no Pantanal

Este ano, o juizado itinerante mato-grossense resolveu um conflito delicado envolvendo crianças e adolescentes do Pantanal que estavam impedidos de frequentar a escola. Cerca de 80 crianças moram no limite entre dois municípios – entre Barão de Melgaço e Poconé, a 121 e 104 km de Cuiabá, respectivamente , e não tinham onde estudar porque nenhuma das duas prefeituras construía uma escola na região ou se responsabilizava pelo transporte de barco e ônibus das crianças até uma unidade escolar mais próxima. 

files/conteudo/imagem/2017/07/cf090cffaa1c02322072f5f22d690219.jpg Rios levam justiça às populações isoladas do Pantanal

O caso mais grave era da Ilha do Piraim, na qual as crianças dependem do uso integrado de barco e ônibus para chegar à escola. Enquanto a Secretaria de Educação de Poconé dizia que nada poderia ser feito em relação às crianças, já que a comunidade não pertencia ao município, e sim a Barão de Melgaço, a prefeitura desta última também não se responsabilizava pela educação das crianças  a única escola que existiu na comunidade da Ilha do Piraim foi fechada há mais de dez anos. 

Apesar de a comunidade da Ilha do Piraim pertencer à Barão de Melgaço, devido à distância até esse município, os moradores costumam fazer compras ou ir ao médico em Poconé.  Por conta da falta de transporte, em 2015, as crianças que vivem nas comunidades à margem do Rio Cuiabá não tiveram nenhum dia de aula. E, dessa forma, iam crescendo analfabetas, assim como grande parte dos adultos da comunidade, formada principalmente por pescadores. “As crianças tinham grandes sonhos, conversamos com algumas que queriam ser médicas, mas não conseguiam chegar até a escola”, conta o servidor Celso Ferreira da Cruz Victoriano, que atua na Justiça itinerante. 

Mas a atuação da Justiça Itinerante, que acompanhava o caso há mais de um ano, mudou a realidade dessas crianças no início de 2016. Após uma conciliação feita pelo juiz Edson Dias Reis, do Juizado Especial Itinerante de Mato Grosso, ficou definido que o transporte fluvial do grupo da ilha até Porto Cercado será de responsabilidade da Prefeitura de Barão de Melgaço. A partir daí até a escola, localizada na zona urbana de Poconé, o transporte ficará a cargo da prefeitura local.

Entre 2014 e 2016, foram 3.460 pessoas atendidas pela Juizado Itinerante de Mato Grosso, e mais de 1600 audiências realizadas pela Justiça Itinerante, muitas em regiões distantes como Rondolândia e Conselvan, mais próximos à floresta amazônica. 

Justiça na comunidade quilombola

No Estado de Goiás, o programa de Justiça Itinerante, que existe há mais de 25 anos, é feito a partir de uma triagem daquelas comarcas que estão mais assoberbadas de processo ou estão sem um juiz titular. Uma equipe de juízes e servidores é selecionada para prestar auxílio a essas comarcas, para atendimento da população e julgamento de processos envolvendo todas as matérias, desde processos sobre pensão alimentícia e previdenciário até audiências criminais. Em 2016, foram 3.731 audiências e 3.224 sentenças dadas pela Justiça Itinerante em cidades como Aragarças, a quase 400 quilômetros da capital Goiânia, São Miguel do Araguaia, Posse, Alto Paraíso, Mozalândia, entre muitas outras. 

De acordo com Ronnie Paes Sandre, juiz auxiliar da Presidência do Tribunal de Justiça de Goiás e coordenador do programa itinerante Justiça Ativa, uma situação peculiar foi chegar ao maior quilombo do país, no chamado “Vão do Moleque”, uma viagem que demora um dia de carro partindo da cidade de Cavalcante. “Fomos até lá para atender a demandas simples, mas muito significativas para a população local”, diz o juiz Sandre. 

Somente no primeiro semestre de 2017, a Justiça itinerante de Goiás realizou 1.462 audiências e 1.949 sentenças. Segundo o juiz Sandre, em muitas ocasiões o magistrado precisa se deslocar até a casa de uma parte para realização de audiências, nos casos em que se encontram impossibilitados de se levantar da cama por alguma doença ou deficiência.

Outras matérias da série Justiça Itinerante:

Clique aqui para ler, também, a matéria especial “Justiça Itinerante: juízes vão ate os ribeirinhos da Amazônia” publicada na última terça-feira (4/7). 

Clique aqui para ler a matéria especial “Justiça Itinerante: juízes nordestinos levam cidadania à população”

Luiza Fariello

Agência CNJ de Notícias