Artigo: O Judiciário e o software livre

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Joaquim Falcão*

Se depender da liderança da ministra Ellen Gracie e do CNJ, a decisão está tomada. O Poder Judiciário opta pelo software livre. Deve o Poder Judiciário adotar em suas operações o software proprietário ou o software livre? Quais as conseqüências de um ou de outro? Essa decisão estratégica entrou na pauta dos tribunais. O Congresso aprovou há algumas semanas lei fundamental à reforma do Judiciário, que altera o Código de Processo Civil -ainda feito nos limites materiais e culturais dos autos de papel. Chega-se aos autos virtuais, ou ao processo eletrônico. A nova lei viabiliza a informatização do rito ordinário, da imensa maioria das ações, intimações, certificações etc. Daí a necessidade de discutir qual modelo de software adotar.

Essa decisão envolve mais que questões jurídico-processuais. Envolve a segurança dos tribunais, a diminuição dos seus custos e a qualidade dos serviços e atinge os interesses privados do milionário mercado de produção de softwares para o Judiciário brasileiro. Se depender da liderança da ministra Ellen Gracie e do Conselho Nacional de Justiça, a decisão está tomada. O Judiciário opta pelo software livre. Até hoje, a imensa maioria dos tribunais encomenda e compra softwares proprietários. Pagam os custos da criação dos programas e tendem a ficar dependentes das empresas que os criaram. Se um tribunal que pagou pela criação do software quiser cedê-lo a outro órgão da Justiça, não pode. Na maioria das vezes, terá de pagar à empresa proprietária do código-fonte do programa. Daí o conselheiro Douglas Rodrigues afirmar: “[O CNJ] repudia a idéia de que os tribunais se tornem reféns de empresas de tecnologia; (…) precisamos alcançar a independência completa dos tribunais nessa área”.

Essa opção nada tem de ideológica, como dão a entender as grandes empresas de software proprietário, que tentam mercadologicamente desqualificar o software livre. Tem, sim, e muito, do que Camões chama de “saber de experiência feito”. O Judiciário brasileiro já vem percebendo na prática as vantagens do modelo. No TRF da 4ª Região, por exemplo, que abrange RS, SC e PR, emprega-se o software livre nos juizados. Um sucesso operacional a custos reduzidíssimos. Abrange 400 mil processos, lida com 3 milhões de documentos e atende 20 mil usuários cadastrados. Só quatro funcionários são responsáveis por toda a operação. Há uns três ou quatro anos, as empresas que detêm o mercado de software tentaram dificultar com fortes lobbies a entrada do software livre no Brasil. Alegavam ser opção tecnologicamente inferior e “alternativa”. Argumentos clássicos, a que aderem com pressa os mimetistas de plantão que nos querem amanhã como um país desenvolvido de ontem.

A opção pelo software livre não é opção tupiniquim. É mundialmente crescente, especialmente quando se quer contar com a colaboração da comunidade. A Nasa, o FBI, a Casa Branca e o Pentágono o adotam em diversos momentos. O Estado norte-americano de Massachusetts também -onde, aliás, estão sediadas instituições como Harvard e o MIT. As cem maiores empresas do mundo, segundo a revista “Forbes”, já usam, de uma forma ou de outra, softwares livres. A IBM, por exemplo, anunciou em 2002 ganhos acima de US$ 1 bilhão com a venda de software, hardware e serviços baseados em software livre. Gigantes como HP, Motorola, Dell, Oracle, Intel e Sun Microsystems também fazem pesados investimentos em software livre.

Ainda neste ano, o Supremo informatizará em software livre o processamento do recurso extraordinário, que se ramificará pelos tribunais. O CNJ já tem também positiva experiência de autos eletrônicos. Cedeu o código-fonte aos tribunais. Simbolicamente, o primeiro beneficiário será o Panamá, que viu, gostou, provou e levou sem nenhum ônus. O próximo passo será definitivo. A ministra Ellen Gracie e o CNJ estão desenvolvendo um modelo informatizado do rito ordinário, disponível sem custo aos nossos tribunais. De comprador passivo, nosso Judiciário passa a ativo criador de si mesmo. O Judiciário deverá ter uma equipe menor e mais qualificada no setor de informatização; os custos operacionais diminuirão; será desenvolvida, enfim, uma cultura e tecnologia de softwares nacionais, melhor formação de recursos humanos, maior integração administrativa entre os tribunais e mais rapidez para o usuário da Justiça. Sem as restrições contratuais e legais típicas do modelo proprietário, os tribunais poderão falar a mesma língua tecnológica escolhida por eles, em colaboração, e deixarão de ser o “arquipélago” de ilhas isoladas a que se refere o ministro Pertence.

As empresas de software proprietário não deixarão escapar de suas mãos esse milionário mercado. Se a concorrência for feita nos limites do melhor preço e maior qualidade, tudo bem. Mas nem sempre é assim. Sobretudo se pensarmos que, se a decisão do Judiciário der bons resultados, é provável que os demais Poderes (Legislativos e Executivos dos Estados, dos municípios e da União), paulatinamente, optem pelo software livre. O que não será surpresa. O Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), que processa grande parte das informações do governo federal, vem utilizando software livre, o que já promoveu uma redução de custos de cerca de R$ 14,8 milhões, tendo exigido investimentos em serviços e treinamento de apenas R$ 396 mil. A Embrapa, Dataprev, Marinha do Brasil, Serpro, Instituto Nacional da Tecnologia da Informação e Ministério do Desenvolvimento Agrário já estão utilizando algum tipo de software livre há pelo menos dois anos. A direção é essa. E está correta.


(*) JOAQUIM FALCÃO, 63, mestre em direito pela Universidade Harvard (EUA) e doutor em educação pela Universidade de Genebra (Suíça), é professor de direito constitucional, diretor da Escola de Direito da FGV-RJ e membro do Conselho Nacional de Justiça.

Artigo publicado em 17 de novembro de 2006