“Quem já ouviu falar que uma gestante tem o direito de entregar o seu bebê para adoção?” É com essa pergunta que o psicólogo Paulo André Teixeira, coordenador do Programa Acolher, do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE), costuma começar as suas palestras em cidades do interior do Estado. Em geral, metade das pessoas que o escuta – em escolas, universidades, rádios ou centros comunitários – não tinha conhecimento de tal previsão legal do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
O estatuto determina, em seu artigo 13, que as gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção serão obrigatoriamente encaminhadas, sem constrangimento, à Justiça da Infância e da Juventude. Nessas situações, ocorre a extinção do poder familiar. Diferentemente da destituição do poder familiar, que acontece em decorrência de um processo judicial, quase sempre envolvendo maus tratos à criança, a extinção não tem o caráter punitivo ou criminal.
O trabalho de disseminação dessa informação faz parte do Programa Acolher que, desde 2011, recebe gestantes de todos os perfis socioeconômicos, etários, com as mais variadas histórias e que têm, em comum, o desejo de não se tornarem mães. As mulheres chegam à Justiça por iniciativa própria ou encaminhadas pela rede de saúde ou de assistência social – por vezes, são orientadas na própria maternidade, tão logo dão à luz e manifestam a vontade de entregar a criança para adoção.
O programa está presente em dezoito cidades do interior de Pernambuco e tem como norte o Programa Mãe Legal, que funciona em Recife desde 2009. O caminho para que a criança seja inscrita no cadastro nacional de Adoção, coordenado pela Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) desde 2008, não é automático – durante os atendimentos no programa Acolher e Mãe Legal, as gestantes têm a oportunidade de fazer uma profunda reflexão e, inclusive, de mudar de ideia.
“A base do programa é o respeito e a escuta da história individual”, diz o psicólogo Teixeira. A maioria das mulheres que buscam o programa estão em situação de vulnerabilidade social e são incluídas em programas de assistência social. Contudo, a situação socioeconômica não é determinante. “Há mulheres de classe média e alta que nos procuram, algumas não tentaram abortar por questões religiosas. Muitas têm condição social de criar, mas não têm vontade”, diz.
As mulheres chegam sozinhas ou acompanhadas do companheiro, e nem sempre informam quem é o pai da criança que esperam. Algumas chegam ao programa prestes a parir. Pela metodologia adotada no programa pernambucano, a gestante tem o direito ao sigilo, e membros de sua família só são acionados com a sua concordância. “Há muitos casos de estupro e violência doméstica. Outro dia, na região do Arcoverde (sertão pernambucano), uma adolescente que havia engravidado do pai buscou o programa”, diz Teixeira.
Decisão segura
Quase sempre, as gestantes chegam à Justiça extremamente abaladas com a gravidez indesejada. Em um caso recente, um casal jovem procurou o programa a menos de duas semanas de o bebê nascer. O namorado havia recebido um diagnóstico incorreto de que era estéril, e ambos manifestaram o desejo firme de dar a criança à adoção. A gestante, de apenas 19 anos, já havia tentado o suicídio duas vezes durante a gravidez, a última delas ao se jogar na frente de um carro.
A gestante soube do Programa Acolher por meio de uma amiga, que frequentou uma das palestras – até então, nunca havia imaginado que tinha o direito legal de entregar a criança para adoção. “Apesar de eles terem uma situação precária, a gestante expressou claramente que nunca teve o desejo de ser mãe, mesmo que tivesse uma condição socioeconômica melhor”, diz a assistente social Flávia Florência, que trabalha no Programa Acolher na 3ª Vara Cível de São Lourenço da Mata, região metropolitana do Recife. Após o nascimento da criança, que foi encaminhada prontamente a uma instituição de acolhimento, o casal confirmou, perante o juiz, o desejo de que ela fosse inscrita no Cadastro Nacional de Adoção.
Nem sempre esse é o desfecho, já que em muitos casos as mulheres acabam mudando de ideia. Em outro caso atendido pela assistente social Flávia, por exemplo, a gestante já havia feito uma promessa de que, quando a criança nascesse, seria “dada” a uma prima distante. No entanto, no decorrer dos atendimentos, ela se deu conta de que já tinha feito um vínculo com esse bebê e decidiu ficar com ele. “O programa é um espaço de amadurecimento e fortalecimento da decisão da mulher para que isso seja feito de maneira segura”, diz Flávia.
Nos casos em que a criança permanece com a mãe biológica ou com a família extensa, há o acompanhamento da vara de infância durante seis meses. De acordo com Teixeira, isso ocorre tanto para auxiliar o fortalecimento da maternidade, quanto para prevenir a entrega da criança para outra pessoa, devido à forte rede de tráfico de crianças que existe no país.
Preconceito social
O forte preconceito social em relação às mulheres que não querem ser mães é visível para os profissionais que trabalham no Programa Acolher. Para Teixeira, em geral, a comunidade e a família da gestante não apoiam a gravidez, e mesmo assim, condenam a decisão de entregar para adoção. “Não há um lugar social para a mulher que está grávida e naquele momento não deseja ser mãe, o programa entra nessa lacuna”, diz.
Para Flávia, a entrega “sem constrangimento”, conforme previsto no ECA, raramente ocorre. “A mulher que não deseja ser mãe da criança que espera é vista como um monstro ou uma criminosa perante a sociedade. Nosso maior desafio é combater o julgamento e o preconceito, o que eu acho que, infelizmente, levará umas cinco gerações para mudar”, diz Flávia.
Uma das situações frequentes que retrata esse preconceito é que essas gestantes deixam de fazer o acompanhamento pré-natal por vergonha de frequentar o posto de saúde de sua comunidade. Nesses casos, o programa consegue uma vaga em uma unidade de saúde mais distante de onde a mulher reside.
A assistente social conta que é preciso fazer um trabalho constante para sensibilizar profissionais do município, como, por exemplo, médicos e enfermeiros das maternidades. Isso porque, muitas vezes, apesar de já estarem cientes de que a criança será inserida no Cadastro Nacional de Adoção, não respeitam o desejo da mãe de não amamentar o bebê ou de não ficar em alojamento conjunto com ele.
Durante os atendimentos às gestantes feitos no programa, os profissionais buscam entender qual é a vontade da gestante, que escolhas fará diante de uma situação tão difícil. “Algumas aceitam amamentar a criança, querem dar um nome, outras não querem vê-la e há aquelas que preferem escrever cartas de despedida”, diz o psicólogo Teixeira.
Luiza Fariello
Agência CNJ de Notícias