Uma nova lei que amplia a proteção a mulheres e pessoas vulneráveis e inclui o estupro coletivo e “corretivo” como causas de aumento de pena foi sancionada pelo ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), enquanto exercia a Presidência da República, nesta segunda-feira (24/9) devido à viagem do presidente Michel Temer ao exterior. A lei, aprovada pelo Congresso Nacional, altera o Código Penal e tipifica os crimes de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro.
Ao sancionar a lei, o ministro Toffoli ressaltou o trabalho do CNJ em relação à defesa das mulheres e crianças e ao combate à violência, especialmente na gestão anterior, da ministra Cármen Lúcia. “Hoje celebramos mais do que a sanção de projetos de lei da maior importância para a sociedade brasileira, para a proteção da família e da dignidade da mulher”, disse. Segundo o presidente em exercício, as mudanças são necessárias para o avanço legislativo na proteção da mulher e preenchem lacunas na tipificação criminal extremamente importantes para o aprimoramento da nossa legislação.
A lei, de autoria da senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB), estabelece o crime de importunação pessoal, que consiste em “praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”. A lei inclui também o crime de divulgação de fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual “que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza à sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia”. Para ambos os crimes, a pena prevista é de reclusão de um a cinco anos, se o ato não constitui crime mais grave.
“Precisamos que nossas leis penais acompanhem o avanço da tecnologia e da comunicação. Vivemos uma era em que reputações são arrasadas ao mero clique do botão de um celular”, disse Toffoli. De acordo com o ministro, embora ainda perdure uma distância grande entre os textos normativos e a vida concreta, isso não quer dizer que deve cessar o trabalho de aprimorar sempre o ordenamento jurídico. “O direito pode ser sim instrumento de alteração da realidade, para torná-la melhor e mais justa. Aliás essa é a sua missão maior imposta pela nossa Constituição Cidadã de 1988”.
A norma inclui também o aumento de pena, de um terço a dois terços, se o crime sexual é estupro coletivo – mediante concurso de duas ou mais pessoas – ou o chamado “estupro corretivo”, que em algumas comunidades seria aplicado, por exemplo, pelo marido para “punir a traição do cônjuge”.
“A pauta da não violência principalmente contra a mulher tem que ser defendida por todos e vai ao encontro de toda evolução legislativa que a bancada feminina tem feito no Congresso”, disse o ministro dos Direitos Humanos, Gustavo Rocha, presente à solenidade.
48,7 mil processos de estupro contra vulnerável em 2017
Conforme a Lei 12.015, de 2009, que alterou trechos do Código Penal, quando o ato libidinoso ou a conjunção carnal é praticado com menor de 14 anos, o fato é considerado estupro de vulnerável, independentemente da alegação de consentimento da vítima – ou seja, presume-se que toda vítima menor de 14 anos é vulnerável. Também são consideradas vulneráveis pessoas que, por enfermidade ou deficiência mental, não tenham o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não possam oferecer resistência.
Em 2017, 48.728 processos ingressaram na Justiça de todo o País envolvendo o crime de estupro de vulnerável, de acordo com o banco de dados do Relatório Justiça em Números, divulgado anualmente pelo CNJ e que reúne informações de 90 tribunais.
O banco de dados, principal fonte das estatísticas oficiais da Justiça desde 2004, apresenta um detalhamento da estrutura e litigiosidade do Poder Judiciário, além dos indicadores e das análises essenciais para subsidiar a Gestão Judiciária brasileira. O documento consolidado do Relatório Justiça em Números 2018 pode ser acessado aqui.
O número informado pelos tribunais ao CNJ demonstra apenas uma parte da realidade, já que há oscilações nos diferentes Estados, quanto à padronização ao classificar os processos por assunto. Isso significa que, em alguns casos, pode haver subnotificação ou mesmo duplicação no registro destes processos pelos tribunais. Além disso, um mesmo réu pode responder por mais de um processo de estupro na Justiça, bem como um processo pode envolver mais de uma vítima e mais de um assunto, como é o caso, por exemplo, de um estupro de mais de uma pessoa, sendo uma delas considerada vulnerável e, outra, não.
As edições passadas do Justiça em Números demonstram que, em 2015, incluindo os processos classificados como “estupro de vulnerável” e aqueles classificados somente como “estupro”, foram 67.215 casos novos – 36.876 e 24.339, respectivamente – e, em 2016, foram 71.297 – 38.341 e 32.956. Já em 2017, o número foi de 83.827, incluindo 35.099 casos de estupro.
O crime de estupro está previsto no artigo 213 do Código Penal, que o define como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. O código prevê penas que variam de seis anos a 10 de prisão, que podem ser agravadas caso o crime resulte em morte, lesões corporais graves ou seja praticado contra adolescentes de 14 a 18 anos incompletos. O crime chega à Justiça por meio de denúncia feita pelo Ministério Público, na proposição de uma ação penal.
O banco de dados do Relatório Justiça em Números também aponta que, entre os adolescentes que cometeram atos infracionais, houve 4.286 novos casos na Justiça envolvendo estupros de vulnerável, e 5.080 processos sobre estupros cometidos por adolescentes contra pessoas consideradas não-vulneráveis. O painel interativo com os dados pode ser acessado aqui.
De acordo com a promotora de Justiça Mariana Seifert Bazzo, da 2ª Promotoria da Infância e Juventude de Curitiba, do Ministério Público do Estado do Paraná, os casos de estupro de crianças costumam vir a conhecimento principalmente por meio de pessoas da escola da criança, como professoras, com quem elas criam confiança para contar algo que seria visto como vergonhoso – as escolas repassam ao conselho tutelar ou ao ministério público. “A família não raras vezes ‘abafa’ o caso, mães optam por não ver o que está ocorrendo e são comuns casos de mães que toleram crimes sexuais praticados por seus companheiros contra suas filhas”, diz a promotora.
Mudança cultural, aumento de denúncias
A mudança cultural, com o combate ao machismo e à cultura patriarcal, também é apontada por muitos especialistas como um dos fatores mais importantes no aumento das denúncias de estupro e de violência contra a mulher em geral.
A delegada Eliete Aparecida Kovalhuk, da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher de Curitiba/PR, afirma que registros de denúncias antes incomuns, como o estupro marital, a agressão verbal e a violência psicológica estão aumentando nos últimos anos. Isso denota, na visão da delegada, a mudança cultural no sentido de não mais tolerar essa situação – o que é importante para evitar o agravamento da violência doméstica.
De acordo com dados da Secretaria da Segurança Pública e Administração do Estado do Paraná, em 2017, ocorreram 6.660 crimes contra a dignidade sexual. No primeiro trimestre de 2018, houve 1.761 casos – 5,7% a mais do que no mesmo período do ano anterior.
Um dos desafios das delegacias da mulher é conscientizar a própria vítima. “Muitas vezes, há dificuldade de a mulher se ver como vítima de violência. Precisamos trabalhar isso aqui. Elas já têm dificuldade de chegar até a delegacia e, depois, sofrem ainda preconceito por terem denunciado”, diz a delegada Eliete.
Violência doméstica
De acordo com dados do CNJ, apresentados na pesquisa “O Poder Judiciário na aplicação da Lei Maria da Penha”, em 2017 ingressaram nos tribunais de justiça estaduais do país 452,9 mil casos novos criminais envolvendo violência doméstica contra a mulher, número 12% maior do que em 2016. Fruto dos dados coletados por meio do Relatório Justiça em Números, entre outros bancos de dados do CNJ, o Portal de Monitoramento da Política de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres foi lançado em agosto deste ano também para dar visibilidade a informações das varas e juizados que respondem exclusivamente sobre esses casos, por Estado.
Para a promotora Mariana Bazzo, do MP-PR, um ponto positivo é que a mulher está sendo finalmente vista como sujeito de direitos, e o reconhecimento de evidente tratamento discriminatório do Direito Penal, por milênios, está se escancarando. Um dos exemplos citados pela promotora é o fato de, até 2005, a lei prever que o casamento da vítima com agressor ou terceiro extinguia punibilidade do estuprador. “Têm-se a mulher como sujeito de direitos e não o que ela representa para a sociedade masculina, como era visto antes”, diz a promotora.
Na opinião de Mariana, o aumento da conscientização e valorização da punição da violência sexual leva a dois efeitos: a diminuição das subnotificações e o aumento das denúncias oficiais. “Se há registro formal podem ser iniciadas investigações e punidos os culpados, que não raras vezes são criminosos contumazes. Isso permite uma maior prevenção do delito”, diz.
Combate à subnotificação
Apesar do aumento do número de processos que ingressam na Justiça por ano envolvendo o crime de estupro, a subnotificação desses casos ainda é bastante significativa. A pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), apresentada em 2014, intitulada “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde” – considerada a primeira a traçar um perfil dos casos de estupro no Brasil a partir de informações de 2011 do Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan) – estima que no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil. Destes casos, conforme a pesquisa, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia.
De acordo com dados do Atlas da Violência 2018, produzido pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2016, foram registrados nas polícias brasileiras 49.497 casos de estupro. Nesse mesmo ano, no Sistema Único de Saúde foram registrados 22.918 incidentes dessa natureza, o que representa aproximadamente a metade dos casos notificados à polícia. Desse total, 50,9% foram cometidos contra crianças de até 13 anos – quase 30% dos casos de estupro contra crianças são perpetrados por familiares próximos, como pais, irmãos e padrastos.
Conforme o relatório, “certamente, as duas bases de informações possuem uma grande subnotificação e não dão conta da dimensão do problema, tendo em vista o tabu engendrado pela ideologia patriarcal, que faz com que as vítimas, em sua grande maioria, não reportem a qualquer autoridade o crime sofrido”.
Para a promotora Mariana Bazzo, um dos entraves é que grande parte desses crimes ocorre exatamente no ambiente doméstico, e assim, há a mesma dificuldade das vítimas em denunciar pessoas com quem possuem relação de afeto e parentesco, que as que sofrem quaisquer violências domésticas. “Adolescentes temem denunciar seus pais e padrastos, pela mesma dependência afetiva, econômica ou por sofrerem ameaças diuturnamente”, diz. Além disso, para a promotora, muitas vezes há uma dificuldade ainda de acolhimento das vítimas no próprio sistema de segurança pública e sistema de justiça. “As vítimas, quando estão prontas finalmente para efetuar a denúncia, por vezes recebem atendimento nas delegacias ou mesmo no âmbito das Promotorias e audiência judiciais no sentido de julgar seu comportamento- questionando se houve dissenso ou se fizeram algo para merecer aquilo”, diz.
De 2011 para 2016, houve crescimento de 90,2% nas notificações de estupro no país. Os pesquisadores atribuem os dados ao aumento da prevalência de estupros; aumento na taxa de notificação levada por campanhas feministas e governamentais ou à expansão e aprimoramento dos centros de referência que registram as notificações.
Luiza Fariello
Agência CNJ de Notícias