grupo de trabalho que o CNJ formou em agosto para discutir as falhas das atuais práticas de reconhecimento de suspeitos por parte de vítimas, além de elaborar um protocolo de medidas de reconhecimento que ajudem a evitar prisões ilegais e a condenação de inocentes.
A discriminação contra negros no Sistema de Justiça Criminal foi a tônica das manifestações de ativistas e acadêmicos que participaram do seminário técnico sobre reconhecimento pessoal em processos criminais, promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nesta segunda-feira (25/10). O encontro virtual com especialistas é parte das ações doUm estudo da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) que analisou 32 casos de pessoas acusadas graças ao reconhecimento pessoal e depois inocentadas pela Justiça revelou que em 83% dos casos tratavam-se de pessoas negras. Os casos encaminhados por defensores públicos de 10 estados se referiam a processos ajuizados entre 2012 e 2020. Em 60% das ações, antes de serem inocentadas no tribunal, as pessoas indevidamente reconhecidas em vez dos verdadeiros autores dos crimes passaram oito meses presas, em média.
Primeira a falar no encontro, a professora Dora Lúcia Lima Bertúlio inseriu o debate sobre melhorias no procedimento de investigação no contexto maior da história do racismo no Brasil antes de colocar em questão as causas da seletividade da justiça criminal contra a população negra. De acordo com a acadêmica, se o projeto de embranquecimento da população brasileira (ideário de parte da elite na virada do século 19 para o século 20) fracassou – visto que os negros representam mais da metade da população atual – o projeto da elite branca visa, historicamente, mantê-los em posições subalternas na sociedade,
Por isso, a elite estabeleceu no século 19 a percepção que acabou adotada pelo inconsciente coletivo, segundo a qual a população negra é pré-disposta à miséria e ao delito. O senso comum discrimina os negros desde o Brasil-Império, quando a elite (ainda europeia) sequer os considerava seres humanos e usava as leis para se proteger de possíveis revoltas de escravos. Dois séculos depois, a discriminação racial na justiça criminal ainda sobrevive na proteção incondicional do patrimônio pela lei e pelo Estado.
Seletividade histórica
“A apreensão do cuidado ou do controle com relação à população negra, em especial, homens e jovens – que as pessoas exigem e que a segurança pública atende -, não é criação aleatória de algum político ou intelectual nem dos novos tempos. Ao contrário, é sim uma formulação da construção desse país, cujos desenvolvimentos fundamentais têm suas raízes no genocídio da população indígena, na escravização dos africanos em suas diversas etnias e em um sistema escravista que não foi criado pelo Estado, mas que é contemplado pela Constituição de 1824 e, por consequência, presente e reproduzido em todo o sistema legal do Império”, afirmou a professora Dora Lúcia Lima Bertúlio, que integra a comissão de juristas criado pela Câmara dos Deputados para propor medidas de enfrentamento ao racismo estrutural e institucional no país.
A professora defendeu que o CNJ apoie a inclusão de componentes curriculares nos cursos de direito ligados à história do racismo. O Conselho deveria, na visão da acadêmica, julgar os magistrados que aceitarem o reconhecimento pessoal como única prova apresentada pelo Ministério Público na denúncia.
Reparação
De acordo com o professor e advogado da ONG Conectas Direitos Humanos, Gabriel Sampaio, falar em erros unicamente jurídicos cometidos em consequência de falhas no reconhecimento pessoal acaba por desresponsabilizar o Estado. Para ele, além de erros, as prisões ilegais e as condenações de inocentes também legitimam racismo e autoritarismo. “É preciso agir no aspecto decisório para que nosso discurso e o diagnóstico do racismo façam mudanças concretas. Passa por reconhecer as desigualdades que estamos vendo aqui. É preciso responsabilizar o Estado”, afirmou Sampaio, que já foi secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e integrante do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP).
Mestre em direito e criminologia, Deise Benedito propôs um fundo nacional de reparações dos danos morais gerados às pessoas inocentes vítimas das prisões arbitrárias cometidas em função de reconhecimentos faciais equivocados. “Para amenizar esses danos, que envolvem exposição pública, constituição de advogado, uma prisão, uma família que vai se movimentar para provar a inocência daquela pessoa, e os danos de uma prisão, que seja de um dia, um mês, seis meses, um ano de uma pessoa inocente. Tem de se criar um fundo para ressarcir imediatamente essas pessoas pelos danos causados por essa prisão. Além disso, PADs têm de ser instaurados contra os responsáveis pela acusação ilegal das pessoas que foram presas”, afirmou a especialista, que já atuou como perita do Mecanismo Nacional de Prevenção Combate à Tortura (MNPCT).
De acordo com o advogado e mestre em direito Luciano Góes, a seletividade contra os negros operada na justiça criminal inverte uma premissa básica da Constituição de 1988, a presunção da inocência. De acordo com o acadêmico, o racismo institucional da Justiça se baseia em “postulados criminógenos antinegros atemporais”, que transformam a segurança da população branca em insegurança para a população negra. Como em um jogo de cartas marcadas, a Justiça trata a população negra, de acordo com o professor, conforme interpretações extraídas de “rótulos criminalizantes” que o mundo branco atribui aos negros.
“Está falando aqui um homem negro que não sabe ainda se sua fotografia está em algum álbum de figurinhas carimbadas ou se eu posso ser confundido com um criminoso ao ser reconhecido por um algoritmo racista. Afinal, sou mais um preto careca, mais um entre milhões. Meu currículo, meu terno ou minha carteira da OAB não imuniza meu corpo das violências e violações produzidas pelo racismo antinegro brasileiro, pois a carteira da OAB pode ser falsa, como me disse um policial quando defendia um homem vítima de racismo pelo projeto de extensão SOS Racismo, aqui em Florianópolis”, disse o professor que integra o GT Reconhecimento Pessoal do CNJ.
Técnica de investigação
O álbum de figurinhas ao qual o professor Luciano Góes se refere é o conjunto de bancos de dados com fotografias de rostos que a polícia apresenta a testemunhas e vítimas de crimes para realizar o reconhecimento de pessoas suspeitas na investigação da autoria de delitos. De acordo com a professora da Universidade Alberto Hurtado (Chile) Janaína Matida, é preciso discutir quando se deve excluir fotos de determinado banco de dados pois a passagem do tempo inutiliza fotos antigas, além de como montar banco de dados.
A professora Janaína lembrou que, um ano atrás, um habeas corpus concedido pelo coordenador do GT Reconhecimento, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Rogério Schietti, livrou do cárcere Ângelo Gustavo Pereira. O produtor cultural de 30 anos passou um ano preso depois que a vítima de um assalto na Zona Sul do Rio de Janeiro encontrou uma foto dele em uma rede social e a apresentou à polícia, que aceitou o reconhecimento da vítima como legítimo e prendeu o homem, que é negro. “Reconhecimento de pessoas nunca poderá ser confundido com reconhecimento a partir de fotografias de redes sociais, que chegam de maneira informal, pelo WhatsApp, por exemplo. Assumir que reconhecimento de pessoas pode ser feito na modalidade fotográfica implica uma série de desafios”, afirmou.
Um deles é lidar com o funcionamento do cérebro e da memória humana, segundo o especialista em psicologia forense William Cecconello. Para a memória, não existe reconhecimento informal, pois ela foi desenvolvida para possibilitar o aprendizado, e não para reconhecer uma pessoa que foi vista uma só vez. “Uma vez que a testemunha ou vítima faz o primeiro reconhecimento, o rosto ‘reconhecido’ passa a ser atrelado à memória do crime. Se eu fui assaltado e na delegacia me mostraram uma foto, e eu reconheci, meu cérebro sente que está aprendendo que foi esse o rosto visto na cena do crime. Nós não conseguimos mudar o funcionamento básico do cérebro. Por isso, o reconhecimento subsequente não é possível, pois foi contaminado por reconhecimentos anteriores”, afirmou.
Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias
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