Vítima de violência doméstica que teve as mãos decepadas elogia atuação da Justiça

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Foto: Reprodução/TJMT
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Com elas nós praticamos quase todos os atos do dia a dia, desde ao acordar, ao desligar o alarme do celular, por exemplo, até a hora de dormir, com o apagar da luz do quarto. Agora imagine, de maneira brusca, ser vítima de golpes tão brutais praticados com um facão que, tamanha a perversidade e força impostos pelo agressor, ter as suas duas mãos decepadas por aquele que imaginava ser o seu parceiro de vida. Foi exatamente isso que aconteceu com Geziane Buriola da Silva, moradora da cidade de Campo Novo do Parecis (MT), um município a 392km a noroeste de Cuiabá, em 10 de abril de 2017.

Uma relação que, no começo, ia “às mil maravilhas”, mas que, com o passar do tempo e acirrado pelo consumo de bebidas alcoólicas, tornou-se mais um caso de violência contra a mulher registrado em Mato Grosso, com um final inesperado até mesmo para a ex-diarista. Apesar de ter passado por todas as etapas do ciclo da violência em ocasiões anteriores, como o aumento da tensão, o ato de violência em si, seguido pelo arrependimento e comportamento carinhoso, Geziane jamais achou que um dia seu então companheiro, o operador de máquinas Jair da Costa, tentaria assassiná-la com tamanha frieza e agressividade.

“Tudo no começo é bom. Depois ele começou a mostrar as garras dele. Violento dentro de casa, começou a me bater. Até que aconteceu isso. Nós largamos três vezes. Da última vez, quando voltou, aconteceu isso. Minha mãe ainda falou que não era pra gente voltar, que ele ia acabar me matando. A gente não escuta conselho, né? Hoje eu fico só em casa, não trabalho, eu mesma que faço as coisas em casa. É bem difícil, porque é tudo com os tocos dos braços. Para tomar banho, fazer comida, tudo”, conta Geziane. “Tem coisas que eu não dou conta de fazer, tipo arrumar o cabelo, cortar uma carne, uma verdura. Tem que ter ajuda. Dependo de outras pessoas.”

Morando sozinha em uma casa simples, a ex-diarista, mesmo com as limitações impostas pela falta das mãos, consegue fazer o serviço de casa. Lava as próprias roupas na máquina e descobriu um jeito para limpar a casa. “Vou torcendo o pano na centrífuga e vou limpando. Jogo água, ‘raspo’ com o pano e vou centrifugando. É difícil, mas eu consigo passar rodo, vassoura. Tive que me adaptar. Mas pra fazer comida eu me queimo direto (sic), só que eu consigo. Moro sozinha, minha filha que vem me ajudar. E recebo ajuda de amigos, de vizinhos, e assim vai indo.”

Fase do namoro

Geziane revela que o relacionamento com Jair era conflituoso, especialmente quando havia consumo de álcool. Hoje ela percebe ter relevado sinais do temperamento do ex-companheiro. “Sabia que ele batia na mãe dele e que foi preso porque matou um cara, mas eu não acreditava nisso não. Depois que aconteceu tudo isso, eu vim saber quanta coisa ele fez.”

Ela conta que, logo após terem reatado pela última vez, foram ao mercado e que o ex comprou o facão, de cerca de 80 centímetros. Ela só não imaginava quais eram as reais intenções dele. “Ele passou a semana amolando o facão. Eu só perguntava o motivo e ele falava ‘um dia você vai saber’. Certo domingo a gente estava em casa, ele estava bebendo e eu também. Ele amolou o dia inteirinho esse facão, mas não passava pela minha mente que ele ia fazer isso.”

Como já sabia da agressividade dele ao consumir bebidas alcoólicas, Geziane resolver dormir na casa de uma amiga. Mas foi agredida antes mesmo de sair de casa. “Ele me pegou pelos cabelos. Botou minha mão em cima da estante e pegou o facão. Eu joguei ele para trás e saí correndo. Eu saí correndo e caí na porta da vizinha, mas ela fechou a porta na minha cara. Foi quando ele deu umas golpeadas na minha cabeça, no ombro, no rosto, barriga… Aí ele só falou assim, eu me lembro como se fosse hoje, ‘essa aqui já está morta’. Foram mais de 15 golpes. Quase mil pontos.”

“Não justificava ele fazer o que ele fez comigo. Hoje é triste para mim. Tem coisas que eu quero fazer e não dou conta. Eu me olho no espelho, não vejo aquela mulher que eu era. Eu me olho no espelho e fico pensando comigo, meu Deus, eu tinha tudo e hoje estou assim, dependente dos outros”, conta a ex-diarista.

Mãos

Para Geziane, a pior consequência da agressão foi ter perdido as duas mãos. “A parte mais doída foi que ele arrancou as minhas mãos fora. Não foi fácil, não. Essa aqui tinha caído na hora e essa aqui ficou pendurada. Ele veio dos dois lados para cortar meu pescoço, e a minha defesa foi colocar as mãos na frente. Foi quando ele decepou as minhas mãos.”

“Quinze golpes, na cabeça foi o corte mais feio. Na hora que eu estava caída no chão, tive medo de morrer. Pedi pra Deus não deixar eu morrer por causa da minha filha, do meu filho. Eu fiquei consciente o tempo todo, não desmaiei. Eu senti Deus pertinho de mim. Foi isso que me deu mais força para viver. Cheguei no hospital, conversei com os médicos. Falei o tipo do meu sangue, depois não vi mais nada. Só fui acordar depois de 25 dias na UTI”, destaca a mulher, que conta ter ficado dois meses em Cuiabá para se recuperar das agressões sofridas.

Justiça

Jair da Costa foi preso em flagrante pelo crime. “A Polícia chegou na hora, pegou e já levou para a cadeia. Desde aquele dia ele está preso. Só fui vê-lo no dia do júri. Fiquei com medo, mas aguentei firme. Ele agiu com frieza, parecia que nada tinha acontecido.”

Para Geziane, a Justiça teve uma atuação rápida. “Ficaram do meu lado, me apoiaram. Se precisasse de alguma ajuda, era para procurar eles também. A Defesa da Mulher me procurou. Me senti bem. Fiz até medida protetiva, porque ele estava me ameaçando lá dentro da cadeia. Disse que pode passar 40 anos lá e quando sair vai me matar. Hoje ele está preso. Tem que ficar lá, não pode sair. Hoje ele tem as mãos dele, eu não tenho. Por causa dele hoje eu não faço nada. Quero trabalhar e não consigo.”

Recuperação gradual

Foi por meio de uma “vaquinha” virtual que a ex-diarista conseguiu arrecadar R$ 114 mil para aquisição de próteses. Contudo, em razão do peso, a adaptação ao uso delas não tem sido fácil. “Eu não me adaptei muito com ela, porque ela é muito pesada. Machuca, uso mais pra sair de bicicleta, sair para a rua.”

Vivendo apenas com um benefício concedido pelo governo, Geziane destaca que a quantia não é suficiente para se manter e para ajudar na criação da filha, que mora com os pais, a quem destina R$ 300. “O que dá pra eu fazer eu faço. Se der pra fazer compra eu faço, se não, não faço. Peço ajuda direto, cesta básica. Porque meu salário não está dando e, sem as mãos, fica difícil. Antes, fazia minhas diárias, nada faltava. Hoje é tudo diferente.”

Apesar das dificuldades, ela agradece a Deus por estar viva. “Só não está mil por cento porque tem três meses que perdi meu filho. Mas tenho que agradecer por estar viva. Tenho uma filha que mora com meus pais. Queria tanto criar minha filha, mas não posso. Ela que tem que me arrumar. Não é fácil. Minha mãe fala ‘vem morar com nós’. Mas eu não quero. Quero ter meu canto, me adaptar, porque eu não vou ter minha mãe para o resto da vida. Eu vou ter que me adaptar, fazer minhas coisas.”

Às vítimas de violência doméstica, a ex-diarista é enfática. “Um conselho? Largar, denunciar, não se calar. Tem muitas mulheres que não sobrevivem. Eu gostava dele, achava que ele ia mudar. Mas a mulher tem que se amar primeiro. No primeiro tapa, tem que largar, não esperar acontecer coisa pior, igual aconteceu comigo.”

Julgamento

A sessão de julgamento de Jair da Costa foi realizada em 12 de julho de 2019, das 8h40 às 22h35. Após quase 14 horas, o Conselho de Sentença entendeu, por maioria, que ele era culpado pela tentativa de homicídio qualificado. A pena foi fixada em 15 anos e seis meses de reclusão.

O júri foi presidido pelo juiz Pedro Davi Benetti, titular da 1ª Vara de Campo Novo do Parecis. “Se passaram pouco mais de dois anos entre a data do fato e o julgamento. Houve recurso da decisão de pronúncia, que levou o acusado ao julgamento perante o Tribunal Popular do Júri. Nesse caso, respeitou-se a razoável duração do processo. Tanto é que o acusado não recebeu um habeas corpus por excesso de prazo na formação da culpa, foram respeitadas todas as garantias processuais que todas as pessoas acusadas têm e o acusado foi condenado pelo tribunal popular do júri.”

Segundo o magistrado, a punição de Jair da Costa teve caráter pedagógico. “Esse caso teve uma repercussão estadual e nacional, houve divulgação desse fato em vários sites do país, e acredito sim que a resposta do Estado ajuda a punir.”

Benetti explica ainda que o município de Campo Novo do Parecis conta com uma rede de proteção às mulheres vítimas de violência doméstica, que pode fornecer apoio a quem necessita. “Há o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, a Casa da Mulher, o Poder Judiciário, a Polícia, que recebem os pedidos de medida de proteção, de auxílio, e esse atendimento é fornecido quando solicitado. Ao Poder Judiciário cabe a função de dar os devidos encaminhamentos e orientações para que as vítimas tenham acesso à rede de proteção existente no nosso município e no poder público em geral, assegurando os direitos dela enquanto vítima. Direitos assegurados pela Lei Maria da Penha.”

Escalada da violência

Um dado alarmante em Campo Novo, conta o magistrado, é o elevado número de medidas protetivas concedidas semanalmente: são cerca de três, número bastante relevante levando em consideração o tamanho do município. “Já estou há três anos na comarca e observo que esse caso dela não é o único. Temos ainda outro processo em tramitação que envolve feminicídio. Comarca pequena e em três anos temos dois casos, número expressivo.”

O juiz enfatiza ainda que os crimes que envolvem violência doméstica normalmente possuem uma característica de escala da violência. “É o que se chama de ciclo da violência, porque a violência doméstica pode ser de ordem psicológica, física, patrimonial… Ela começa uma pequena violência de ordem psicológica, um tratamento grosseiro, um xingamento. E isso vai evoluindo até chegar num ponto mais grave. Já vira uma ameaça, uma lesão corporal e pode chegar sim a uma tentativa de homicídio, a um homicídio.”

Para Benetti, é necessário que esse ciclo seja rompido, ou seja, que essa “escalada criminosa” seja quebrada, porque as consequências podem ser muito drásticas, como no caso de Geziane. “As mulheres têm que perceber os sinais dessa violência e tomar providências para que o ciclo seja rompido.”

Acolhimento

A presidente do Conselho da Mulher da cidade, Sonnea Cordeiro Zabolotny, salienta que a rede de proteção à mulher existente no município forneceu todo o suporte necessário para Geziane, assim que ela voltou do tratamento em Cuiabá. “Toda rede se mobilizou para recebê-la. Já foi tudo encaminhado via CRAS. A comunidade como um todo também se mobilizou, foi feita muita doação. Tanto é que quando o padrasto dela ficou com ela no hospital, aqui era mobilizado recurso para que ele pudesse ficar lá.”

Segundo Sonnea, ela também estava muito fragilizada emocionalmente, sentindo dor e com quadro depressivo. Por isso, recebeu encaminhamento para um médico psiquiatra, além dos medicamentos. “Quando precisava de mais, era só vir buscar, até que ela conseguisse sair daquele processo de depressão tão forte em que estava. Ela achava que não tinha necessidade de estar viva. Só ela sabia o que estava sentindo. Mas toda essa mudança tinha que partir dela. A família teve todo o auxílio que a comunidade pôde proporcionar e a questão da saúde pública daqui também. Depois que passou essa fase inicial que ela conseguiu se reerguer.”

A representante do Conselho da Mulher assinala que Geziane hoje tenta levar uma vida normal, morando sozinha, com relativa independência. “Ela mora perto dos pais, porque necessita da família. E como uma jovem mulher, e, apesar da cicatriz que ficou no rosto, tem os mesmos anseios de toda mulher. E a gente tem que respeitá-la por isso e dar todo o apoio que for necessário.”

Fonte: TJMT